domingo, 22 de fevereiro de 2015

Mitologia e Imaginário Popular


Mitologia e Imaginário Popular
Marlei Sigrist
(publicado no site www.terrasms.com)


Você é crendeiro ou supersticioso? Se pensou na primeira resposta quer dizer que você acredita verdadeiramente em coisas imaginosas, fantásticas, sem explicação objetiva, mas que se impõem de maneira subjetiva como, por exemplo, acreditar em saci-pererê, mula-sem-cabeça, a mulher de branco e tantos outros mitos. Se optou pela segunda resposta, você se enquadra no grupo de pessoas que, mesmo não crendo verdadeiramente em tais coisas, têm lá suas dúvidas, é sempre bom desconfiar e, por isso, é melhor se prevenir do que remediar. Mas se não optou por nenhuma das respostas e parou para ler a matéria, é sinal de que o assunto lhe interessa pela relevância no campo do conhecimento, da poesia e filosofia impregnadas nas narrativas populares.

Não só as criações fantasiosas fazem parte do imaginário, como também as criações do mundo real, todas elas possuindo suas próprias lógicas e são instituídas socialmente para cumprirem uma função no grupo. Dentre as fantasias criadas encontram-se os mitos. Eles servem, primeiramente, de elementos orientadores e controladores da conduta social do grupo que os adota, porém, esses elementos aparecem camuflados e agem subliminarmente no inconsciente individual e coletivo. 

Cada civilização criou seus mitos de acordo com seu momento histórico. Os mitos gregos, por exemplo, ficaram na história, transformaram-se em literatura de primeira grandeza; hoje já não se acredita mais em Minotauro. No entanto, outros mitos, atuais, ocuparam o seu lugar e estão por aí amedrontando gentes de todos os continentes: mitos urbanos, dos campos, das florestas, dos mares, da terra, dos rios, do céu.....

O mestre Luis da Câmara Cascudo, também conhecido como o “pai do folclore brasileiro”, foi um grande estudioso da cultura popular e fez um belíssimo estudo, entre tantos, sobre os mitos brasileiros, agrupados por estados, contando suas origens e desdobramentos. Quem tiver a curiosidade de saber mais sobre o assunto poderá consultar a obra Geografia dos Mitos Brasileiros, daquele autor, e descobrirá um grande tesouro revelador do imaginário popular. Poderá saber que os mitos mais conhecidos em Mato Grosso do Sul também fazem parte das crenças dos habitantes de outros estados e até de outros países.

É o caso do “Pé de Garrafa”, um ente misterioso, um bicho-homem  que vive nas matas soltando gritos estarrecedores e atordoantes, para enlouquecer os menos avisados, muitos deles caçadores. Tem apenas um pé e é no formato do fundo de uma garrafa. Muitos o descrevem com cara de cachorro ou lobo e até mesmo de gorila, tem o corpo coberto de pêlos, com exceção do umbigo que é branco, da cor do couro que reveste seu corpo.

O livro de Cascudo traz alguns depoimentos, entre eles o de que esse bicho-homem, peludo, já era visto na fazenda Jacobina (MT) no século XIX. Do século XX, há uma transcrição da Revista do Brasil de 1920 que diz: “... o rastro está no chão, tal qual o sinal deixado no pó pelo fundo duma garrafa. Se o poaieiro (aquele que trabalha com a poaia) não é bom, está perdido, deu tantas voltas que nunca mais acha saída.Tem (o bicho) a figura dum homem; é completamente cabeludo e só possui uma única perna, a qual termina em casco em forma de fundo de garrafa. Eu nunca o vi, entretanto ‘vi’ e ouvi os gritos; e os senhores que vão à Mata da Poaia, hão de pelo menos, ver o rastro como eu.”

Outro mito que aparece na fala de alguns pantaneiros é a “Anta Sobrenatural”, um animal portador de atributos sobrenaturais que ora ajuda o homem a realizar proezas difíceis, ora é responsável pelo desaparecimento de pessoas. Também Câmara Cascudo encontrou narrações sobre a Anta-Cachorro, localizando-a entre o Pará e Goiás e explica: “Yapira-Yauara, nome que no tupi quer dizer Anta-Cachorro, animal gigantesco, que tem a forma da onça e as mãos com cascos como pé de anta, com as quais cava a terra, para derribar a árvore em cujo ramo se refugia o adversário, que dela foge”.

Segundo o autor há, no Rio Grande do Norte, a “Anta Esfolada” desde o século XVIII, pois nessa época, na região banhada pelo rio Curimataú, encontravam-se muitas antas, caça preferida dos moradores do entorno, pois seu couro sólido e resistente servia para a confecção de alpercatas e bruacas. Surgiu, então, a Anta fantástica, assombrando os moradores. Corria ligeiro, rodeava casas, roncava alto. Um caçador conseguindo prendê-la numa armadilha, decidiu quebrar-lhe o encanto esfolando-a viva, mas aos primeiros golpes do caçador o animal escapuliu deixando a pele em suas mãos. Por longos anos a Anta esfolada aparecia em todas as fazendas, espalhando o medo. O autor informa que o Município de Nova Cruz/RN, criado no ano de 1868, chamava-se, a princípio Anta Esfolada.

Existe, ainda, o “Come-Língua”, que é um mito encontrado na região do Bolsão/MS, mas seu domínio vai além da divisa do estado, adentrando Goiás, nos sertões do Araguaia, estendendo-se até o Tocantins. Naquele estado, o ente fantástico, pode ser um macaco, maior até que o gorila, uma espécie de King-Kong que ataca o gado dando-lhe murros, arrancando-lhes a língua, comendo-a como um delicioso prato. A variante apresentada em Mato Grosso do Sul é a de que o Come-Língua é um bicho-gente peludo, com funções idênticas as do anterior. Mas nasce de uma história que conta sobre um menino que todos os dias levava almoço, preparado pela mãe, para o pai que estava no serviço de campo. Um dia, levando um ensopado de língua, comeu toda a comida, nada sobrando para seu pai. Este, ao chegar em casa surrou a mãe por não lhe mandar o almoço no trabalho. A mãe, à beira da morte, rogou uma praga no filho, dizendo que ele passaria a vida toda comendo língua só para lembrar-se do que fez. Daí por diante, o menino desapareceu e só é visto nos pastos onde são encontradas reses mortas e sem língua, não se encontrando vestígios de ataque de animais ferozes que explique a ausência da língua. A realidade irá dizer que o surto de febre aftosa responde por esses achados, no entanto, o entendimento popular considera a ação do ser sobrenatural.

“Minhocão” é outro mito encontrado, principalmente no pantanal, porque este ser fantástico vive nos rios, assustando pescadores, afundando canoas e destruindo tudo a sua frente. Alípio Ribeiro, em 1908, dá seu depoimento: “disseram-me que em Corumbá havia uma pessoa que vira o Minhocão. Era um velho italiano, antigo capitão de navio que disse ter seu filho visto o tal bicho, que era preto e parecia um enorme bote de quilha para cima e que deixou seu rastro na lama e no aguapé”.  O mestre Cascudo afirma que o Minhocão é parte integrante da mitologia do Rio São Francisco e que explica fenômenos naturais de erosão. “As barrancas do rio, cortadas a pique, escavações fundas, covas circulares que lembram bocas de túneis, terras afundadas subitamente pelo solapamento das bases submersas, são os trabalhos do Minhocão”. 

Esse mito pertence ao ciclo da Cobra Grande – a Boiúna do Amazonas. As serpentes se prestam à simbologia fluvial. Vamos encontrá-las nas narrativas em todo o mundo e aqui, no Brasil, pode se transformar em um grande minhocão. Como se sabe, a Península Ibérica guarda, do período árabe, a influência oriental, asiática, constituindo material fantástico, de encantamento, irradiando-se pelos continentes por onde se estabeleceram portugueses e espanhóis e que somado ao material fantástico do índio pré-colombiano e do africano, resultou nas adaptações regionais. 

Há outros mitos como o “Pai do Mato”, que no pantanal é confundido, ou é semelhante ao Pé-de-garrafa, ou mesmo ao lobisomem, mas que em Goiás é um homem de pé de cabra e corpo peludo. Sua mão é semelhante a do macaco, tem barbicha, é de cor escura à semelhança do mato enlameado. Anda no bando dos porcos, cavalgando o maior. É apenas mortal no umbigo (semelhantemente ao Pé-de-garrafa) e tem urina azul. Raramente aparece ao homem.

Como é possível perceber, esses mitos podem orientar a vida das pessoas levando-as à preservação dos ecossistemas, dos valores e da moral instituídos pelos grupos sociais. Como orientadores e reguladores sociais, permitem a criação de regras de conduta e punições para quem contrariá-las, assim como faz a religião e o judiciário. Enfim, são formas diferenciadas de organizações sociais visíveis sob diferentes óticas.


Bibliografia complementar consultada:
CASCUDO, Luis da Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. São Paulo: Itatiaia: Edusp, 1983.





Nenhum comentário:

Postar um comentário