quinta-feira, 16 de janeiro de 2020







ARTIGOS

Se utilizar os textos na íntegra, ou partes deles, ou ainda as idéias neles contidas, dê os créditos ao autor, faça a citação.


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terça-feira, 14 de janeiro de 2020



DOCUMENTO ABERTO ÀS INSTITUIÇÕES, IMPRENSA E SOCIEDADE

Prezados/as  senhores/as,

A COMISSÃO SUL-MATO-GROSSENSE DE FOLCLORE (CSMFL), entidade não governamental, CNPJ  11.425.900/0001-05 - Campo Grande/MS, vem a público esclarecer sobre a tradição do “El Toro Candil” que ocorre em municípios de Mato Grosso do Sul, na fronteira com o Paraguai, com base:

- na Carta Magna do Folclore Brasileiro (1995), em cujas orientações recomenda a atuação das Comissões Estaduais junto às autoridades religiosas, políticas, policiais e educacionais no sentido do reconhecimento, prestígio e respeito às várias formas populares de expressão cultural; 

- no artigo 14 da Convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, realizada pela UNESCO em 2003, Paris, cujo tópico b recomenda manter o público informado das ameaças que pesam sobre o patrimônio imaterial.

Assim como a população do Estado de MS, a Comissão de Folclore tem acompanhado pela mídia a representação cultural de dois Bois-Bumbás, criada recentemente em Porto Murtinho/MS, denominada de Toro Candil por seus criadores (produtores culturais) e até de Boi Candil (por emissora de televisão local).

Antes, porém, é necessário fazer algumas considerações e conceituações importantes à compreensão do assunto em pauta.

As manifestações populares tradicionais podem ser entendidas como folclóricas, porque são representativas da tradição; aprendidas junto à comunidade, por imitação, e passadas de geração a geração, em transmissão empírica, distanciada das formas eruditas de ensino, como: escolas, academias, instituições em geral. Elas se desenvolvem com base no contexto das práticas culturais locais e, por isso, refletem esse contexto na linha melódica, nos versos cantados, na indumentária, na estética, nos movimentos, na temática, enfim, no sentido que se dá a elas. São impregnadas de signos e significados importantes para a comunidade que as pratica. Tanto assim que, nos casos de danças e folguedos seus movimentos, além de se ligarem ao ritmo da música, também se ligam aos movimentos do cotidiano no trabalho e/ou na fé e/ou no lazer. Saber sobre a origem dessas danças e sua história depende da memória dos sujeitos mais velhos da  comunidade, que  apenas viam ou as praticavam. As maneiras de ser e estar no mundo de cada grupo social fornecem elementos para a construção da identidade local, que é constituída principalmente pelas: visualidades, sonoridades, gestualidades, linguagens, crenças que narram e modelam uma cultura própria e compõem o imaginário de um país, uma região, uma cidade. A fonte do folclore são os grupos de origem (autênticos), ou seja, os grupos criam suas manifestações, que são aceitas coletivamente e passam a reproduzi-las pelas sucessivas gerações. Qualquer bom portador da tradição popular pode se expressar da seguinte forma: “lembrar é um exercício que deve ser feito diariamente. Lembrar como meus antepassados faziam para que eu possa aparar as arestas, ajustar os ponteiros ao meu tempo e projetar o futuro”. É assim que se mantém a tradição. O resultado desse exercício coletivo é que pode ser apontado como tradição do lugar.

A influência paraguaia na cultura sul-mato-grossense é forte e evidenciada, principalmente, pelos ritmos da polca paraguaia, da guarânia e do chamamé. A brincadeira do el Toro Candil, acompanhada da disputa pela pelota tatá (bola de fogo) são referências dessa fronteira, principalmente durante os festejos da Virgem de Caacupé. Brincar o Toro Candil e dançar com os mascaritas, à primeira vista pensa-se na similaridade dos bumbás do norte e nordeste brasileiros, porém há uma diferença marcante que é brincar com a carcaça do boi de chifres acesos, uma lembrança cômica das touradas espanholas e das corridas de touros, muito presentes, ainda, em várias cidades da Espanha e do México. 

Corrida de Touros Espanha 
Pesquisas realizadas nos anos 90 por Sigrist (2008) e revisitadas por Banducci (2003), registraram a manifestação do el Toro Candil, em que o grupo participante era liderado por Xisto Salvador Antunes, que havia herdado de sua mãe a referida tradição e promessa. Após seu falecimento, tem hoje sua irmã Dionísia responsável pela continuidade da tradição, quando na ocasião dos festejos da Virgem de Caacupé os brincantes são convidados por meio da comunicação oral e também pela rádio local a participarem do evento. Como acontece em muitos locais do Brasil, os grupos populares pouco ou nada recebem de incentivo (cultural e financeiro) do poder público local, muitas vezes justificado por infinitas razões, que não cabe discutir no momento. Em Porto Murtinho não é diferente, os brincantes continuam no anonimato.

 
Mascaritas brincam com a pelota tatá (bola de fogo) - Porto Murtinho-MS








Brincando com o Toro Candil - Porto Murtinho-MS















No entanto, vivemos num período de espetacularização multimídia, que colabora para a descaracterização regional em algumas situações, como tem ocorrido com a representação dançada de dois bois naquele município, cópias do Bumbá de Parintins, montadas por carnavalescos, segundo populares do local (que tem sido registrado pelas redes de televisão, Internet e imprensa durante festivais e acontecimentos políticos), forjando um possível Toro Candil.                       
                                                                                                                







 Boi copiado, recentemente, em Porto Murtinho-MS
Com os mesmos personagens de Parintins-AM


Nesse momento é oportuno lembrar a frase de um dos grandes mestres do folclore brasileiro, Renato Almeida: “Se não vir do povo ou do primitivo (de origem) coisa alguma é folclore, pois apenas nesse ambiente produz-se folclore” (1957, p.42). 


O folclore está na vivência de tradições oriundas do povo que habita um determinado lugar. O folclore não se inventa aleatoriamente, nem se substitui. Ele é criado pela coletividade, passado pelo crivo de todo o grupo social, aceito por todos e passado para as novas gerações. Para ser válido tem de ser autêntico e de raiz, originado pelo povo da região, que recria os costumes ancestrais, conforme explicado anteriormente.

Bumbá de Parintins - AM
Enquanto o Bumba-meu-boi é um folguedo popular que apresenta aspectos de aculturação portuguesa e africana - e o Boi Bumbá de Parintins é uma variante dessa manifestação, contendo signos e significados próprios do Bumbá e da ilha dos Parintintins (eminentemente indígena na sua origem) -, 

 







Personagens indígenas são o forte do Boi de Parintins-AM

el Toro Candil é uma paródia das corridas de touros (Espanha, México), uma festa noturna em espaço aberto, iluminado pelo fogo das tochas acopladas à caveira do boi, complementada pelo corpo feito de varas com cobertura de tecido. Outras vezes o el Toro Candil só possui a cabeça incandescente, sem o corpo. Com essa mínima descrição já é possível perceber tratar-se de duas manifestações completamente diferentes entre si: na estruturação, na formatação, na estética, na significação, na função, e na contextualização. 

Toro Candil - Paraguai por época de San Juan





 
                                Mascarados do Paraguai -   Kamba  -  período de San Juan


Mário de Andrade (1982) acredita que o Bumba-Boi embora não seja genuinamente brasileiro, uma vez que sua origem está ancorada nas culturas ibérica e européia, se torna nacional quando o associa às festas mágicas afro-brasileiras, principalmente ao ritmo, aos instrumentos, às cores e acumula grande influência indígena na postura, nos movimentos da dança. Torna-se, portanto, uma expressão considerável para a cultura popular brasileira, principalmente porque há um sentido crítico implícito na dramatização.

Já o el Toro Candil, que também tem suas raízes ibéricas, ficou mais ligado aos costumes árabes, cujo povo possuía habilidade incrível e os segredos da doma dos corcéis, além da valentia com que dominava os touros. Os camponeses espanhóis de então, que tanto admiravam seu porte galhardo, tentavam imitá-lo, mesmo porque as moças admiravam-nos por tal façanha. Ficou o saudosismo  dessa  época  e  as  touradas  de  Espanha, com  seus  toureiros famosos construíram sua história. 
                                                                                                              
Quando os conquistadores espanhóis desembarcaram na costa Argentina, para povoarem as novas terras, trouxeram em sua bagagem cultural as lembranças das domas e touradas do velho continente. Com o passar dos tempos, a lembrança foi sendo reconstituída em forma de troças e jogos, que como se apresenta hoje, é um jogo com o touro incandescente. Quem brinca esse touro? São os mascaritas, a maioria formada por homens mascarados e travestidos com roupas esfarrapadas, porque estão sujeitos às queimaduras pelo fogo. Essas figuras foram tomadas de empréstimo de outros jogos com a presença de los cambás, que os espanhóis, argentinos, paraguaios, equatorianos e outros fazem em comemorações ao San Juan.
 
                           Toro Candil na Argentina

Se folclore é arte do povo, deverá ser entendido como uma reminiscência do passado, em que sua raiz bebe na fonte da tradição, arraigado a princípios de uma completa humanização coletiva, exteriorizada pela e para a comunidade. A comunidade murtinhense é formada por maioria de descendência paraguaia, mestiça e, portanto, guardiã da memória de seus antepassados indígenas (na linguagem, na alimentação, no artesanato) e espanhóis (nas festividades, nos ritmos e danças). Por isso, reproduz a linguagem fronteiriça do nhengatu (Sigrist, 2008) e, assim, o nome do jogo é dado em espanhol: toro e não touro como pensam os menos informados; candil, de candeeiro (que ilumina, que porta a tocha acesa), e não candiu como o fazem os ignorantes. 

Portanto, el Toro Candil original não possui relação alguma com o Bumbá que se pretende identificar como uma tradição local e dos municípios do entorno. Enquanto o Bumbá se estrutura nos personagens como a Catirina, o Pai Francisco, a Cunhã Poranga (a índia bonita), a Sinhazinha da Fazenda, o Fazendeiro, o Pagé e outros personagens secundários unidos por um enredo, 
el Toro Candil não apresenta nenhum desses personagens, fazendo-se acompanhar apenas dos mascaritas, do toureiro e, às vezes, da ema (no lado brasileiro - em Porto Murtinho e Amambaí, por exemplo). 
        
Toro Candil em Amambai-MS

Desenhos de coração e estrela exibidos no visual do boi são signos exclusivamente das agremiações de Parintins, ou mesmo de Guajará-Mirim(RO), que se reúnem em locais denominados “currais” ou “QGs” não existindo nem nos bois do Maranhão (tombados pela UNESCO como patrimônio da humanidade),  que também têm seus signos próprios.


Boi Bumbá de Guajará-Mirim-RO - também cópia do Boi de Parintins-AM


Essas são apenas algumas das inúmeras discussões possíveis em torno da manifestação folclórica da brincadeira do boi e algumas instituições públicas se fazem de surdas e preferem ignorar o movimento em defesa do folclore brasileiro que se tem feito desde Mário de Andrade, Vila Lobos, Édison Carneiro, Renato Almeida, Câmara Cascudo e tantas outras lideranças de renome internacional. Portanto, a denominação utilizada para tal, a nova moda implantada no local, jamais poderá ser a mesma do tradicional Toro Candil.
                         
Evidentemente que poderemos dizer que o fato das tradições populares encontrarem-se em alta, respaldadas pela legislação do Patrimônio Imaterial já é um ponto a favor; no entanto, da forma como está sendo divulgado por algumas entidades murtinhenses, é como se dissesse que escrevendo rause, rorse, estrite dénce, de buque is on de teibol, estaríamos aprendendo a escrita do tradicional e bom  inglês – um engodo. 

Retomando o aspecto conceitual da discussão e lembrando que há, por vezes, muita confusão quanto à definição de folclore, de cultura tradicional, informamos que a Carta do Folclore Brasileiro, é clara e a UNESCO também o definiu “[...] expressão da cultura tradicional. Entendendo-se como tradicional comportamentos, usos, vivências e valores que qualquer grupo social, relevante culturalmente, utilizou durante o tempo suficiente para impor a marca local, independentemente da sua origem e natureza”, ou seja, a marca transmitida por sucessivas gerações.

Certo que um grupo é sempre um sinal mais pelo que representa no campo do associativismo, mas um grupo de folclore é muito mais, é um defensor da nossa identidade é um promotor do conhecimento. E se até podemos aceitar que todos sejam cultura há, no entanto, que separar as águas, porque de folclore são todos e (apenas) aqueles que constituem um “museu” vivo das suas tradições. 

Nunca será tradição local/regional aquilo que foi criado numa forma estritamente individual e com fins de espetáculo (da sociedade de consumo). Uma manifestação tradicional (folclórica) só o será se a sua raiz beber na fonte da tradição coletiva que tenha a ver com sua realidade, com seu contexto.

O presente relatado pode parecer que não tem importância, mas pode mudar a história local/regional, e daqui a cinquenta anos muitos vão acreditar, erroneamente, que esta era uma tradição do lugar. Conforme Banducci (2003, p.12), “respeitar as idiossincrasias culturais desses povos [ao longo do rio Paraguai], oferecer-lhes oportunidade de reencontrar práticas e costumes tradicionais, permitir-lhes reafirmar sua identidade regional, são questões fundamentais na construção de uma experiência turística socialmente justa e ambientalmente equilibrada. É preciso que o turismo se constitua numa oportunidade para que estas pessoas contem suas [verdadeiras] histórias e, mais que isso, como afirma MacDonald (1997), uma forma de garantir que elas sejam ouvidas”.

Diante do exposto, a Comissão Sul-Mato-Grossense de Folclore sugere aos órgãos públicos e privados e também à sociedade que não se percam os parâmetros culturais sobre a aludida manifestação e, também, considerando que o espetáculo criado recentemente representa um show interessante com potencial para um público ávido pela novidade, sugere:  

 - que o espetáculo criado recentemente sobre os dois bois seja identificado com outro título que não de Toro Candil, pois não o é porque não possui todas as características acima descritas e que ao ser convidado a dar explicações sobre o mesmo para a imprensa / público em geral, sejam bem esclarecidas as diferenças entre o tradicional e o criado para o espetáculo, a fim de não confundir as pessoas que assistem, levando-as a acreditarem que se trata de tradição local;

 - ao grupo tradicional de Toro Candil sejam igualmente oferecidos todos os meios de apresentação, reconhecimento, valorização e incentivos públicos, para que seus protagonistas e portadores das raízes culturais tenham a mesma oportunidade de visibilidade e reconhecimento dos setores públicos e privados.

Conforme a Carta Magna do Folclore Brasileiro, em seu Capítulo VII, “é necessário prestigiar e divulgar as manifestações artísticas representativas das diferentes comunidades; respeitar os interesses dos representantes da cultura popular nas decisões relacionadas à dinâmica de suas manifestações, sem atitudes paternalistas nem imposição de modelos alheios ao próprio folclore”. E no seu capítulo IX, há orientações aos grupos parafolclóricos, “que são assim chamados os grupos que apresentam folguedos e danças folclóricas, cujos integrantes, em sua maioria, não são portadores das tradições representadas. 
Organizam-se formalmente, e aprendem as danças e os folguedos através do estudo regular, em alguns casos, exclusivamente bibliográfico e de modo não espontâneo. Recomenda-se, pois, que tais grupos não concorram em nenhuma circunstância com os grupos populares e que em suas apresentações, seja esclarecido aos espectadores que seus espetáculos constituem recriações e aproveitamento das manifestações folclóricas” (desse ou de outros lugares). 
Fato assistido por milhares de telespectadores, durante o último Festival de Porto Murtinho, ocorrido no final de outubro deste ano, emissora de televisão anuncia a manifestação como uma tradição local de centenas de anos, quando na verdade foi inventada/ transposta/ copiada há menos de quatro anos, inspirada pela moda das transposições (como ocorrido com o carnaval baiano espalhado por todo o Brasil, por interesses comerciais).  É certo que a cultura popular, como qualquer outra vertente social, necessita da comunicação, e muito em especial da imprensa, já que este meio é determinante no registro da história e do movimento que o folclore alcança; por isso, tem importante papel quando atua honestamente, esclarecendo sempre as verdades sociais, culturais e outras. Entre nós, em especial a atenção para a tradição regional. Eis o desafio: dar a dimensão exata do que é cada coisa, que deve estar cada uma em seu lugar.



Referências Bibliográficas:
ALMEIDA, Renato. A inteligência do folclore. Rio de Janeiro: Americana-INL, 1957. 
ANDRADE, Mário de. Danças Dramáticas do Brasil. 2ª edição, Tomo I, Belo Horizonte: Itatiaia, 1982.
BANDUCCI, Álvaro. “Turismo cultural e patrimônio: a memória pantaneira no curso do rio Paraguai”. In: Revista Horizontes Antropológicos. Porto Alegre: IFCH-UFRGS, vol.9, n.20, out./2003.ago/1951. Revisto e atualizado no VIII Congresso, Salvador: 12-16 dez./1995.
CONVENÇÃO PARA A SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL. Documento elaborado durante a Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), na 32ª sessão. Paris, 29/9-17/10/2003.
SIGRIST, Marlei. “Um paraíso entre a Cordilheira e o Cerrado”, In: SENAC.DN. Pantanal: sinfonia de sabores e cores. Rio de Janeiro: Ed. Senac Nacional, 2003. 
______________. Chão Batido: a cultura popular em Mato Grosso do Sul: folclore, tradição/ 1ª ed. 2000 / 2ª ed.rev.e ampl. Campo Grande, MS: M.Sigrist, 2008.
______________. “A dança tradicional – uma expressão do regionalismo”, In: Anais da Uniarte 25 anos. Mesa Redonda: Artes, Literatura e Cultura: interfaces e intermediações. Dourados: UNIGRAN, 24-28/out./2009. (em andamento para publicação).

Campo Grande,     2009

Cordialmente,

Marlei Sigrist
Presidente da Comissão Sul-Mato-Grossense de Folclore

Maria Ivonete Simocelli                                      Jussara Terezinha Vilhalba
 1ª Secretária                                                    Conselheira 

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Com Márcia Ferreira do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/RJ e
Maria de Lourdes Macena (Comissão Cearense de Folclore)


Saber Popular
Marlei Sigrist
(Publicado no site www.terrasms.com.br)

Resumo:
Em sua evolução, o homem - ser social-histórico, constrói um saber popular, não científico, repassado pelas sucessivas gerações. Esse conhecimento é objeto de pesquisa no campo das Ciências e Mato Grosso do Sul contribui com estudos.


Prazerosamente, estamos iniciando esta coluna, que trará uma série de artigos, cujo assunto principal será a Cultura Popular em seus diversos aspectos ligados às manifestações tradicionais e também sua reorganização no mundo atual. Pretendemos expor as relações que existem entre a Cultura Popular e outros campos de conhecimento.

Nesse primeiro encontro, privilegiamos o saber popular. A história já nos contou sobre a evolução do homem enquanto ser histórico e, também, nos informou dos primeiros passos do pensamento humano, na busca por explicações acerca do universo. O mundo imaginativo, sobrepondo-se ao da lógica, o levou à criação e desenvolvimento de seres fantásticos, crenças e rituais sagrados. O raciocínio organizado, aos poucos, ganha espaço e o homem faz Ciência, criando técnicas aperfeiçoadas. Assim, pôde ampliar seu domínio sobre a natureza e facilitar sua vida diária, atualizando-se constantemente.

Porém, atualizar-se, renovar-se não significa, necessariamente, romper com o passado, porque dele depende para pensar a reorganização e propor coisas novas. Por isso, o homem guarda lembranças desse passado, do grupo social ao qual pertence e procura transmitir, de forma renovada, os valores e os fazeres de seus antepassados, mas preservando suas tradições. Trata-se, portanto, de uma cultura elaborada pelo povo ao longo do tempo e que se torna herança comum. Assim, o homem consegue explicar a sua existência no presente, baseado  nos conhecimentos adquiridos pelas sucessivas gerações.

Mas como é um conhecimento não científico e, muitas vezes, calcado exclusivamente na fantasia, torna-se pouco ou nada confiável. Por isso os estudos da Cultura Popular necessitam de um aparato de suportes teóricos: filosóficos, históricos, antropológicos, teológicos, e tantos outros para darem sustentação às pesquisas, num esforço maior do que outras áreas do conhecimento propõem. 

É neste barco que esta colunista se encontra há mais de vinte anos, não parando de navegar até hoje. Mas há antecedentes, vejamos: o grande passo para a solidificação dos estudos da Cultura Popular, no Brasil, foi dado por Mário de Andrade, a partir da Semana de 1922 e por Câmara Cascudo, num trabalho incansável de resgate do folclore do Norte e Nordeste do país. Cada qual, a sua maneira, e em distintos locais, alavancaram o movimento em prol da pesquisa, divulgação e valorização dessa cultura, embora outros pesquisadores, anteriormente, já tivessem dado grandes contribuições.

A partir daí, os estudos sobre o saber popular intensificaram-se, porque especialistas de diversas áreas interessaram-se pelo assunto: antropólogos, sociólogos, musicólogos, historiadores, comunicólogos, enfim, aqueles que se dedicam ao estudo do homem e seu meio. 

Em Mato Grosso do Sul, ao lado de ilustres pesquisadores de todas as áreas, de artistas, poetas e educadores, estamos ajudando a construir uma pequena parte do acervo de material relativo à Cultura Popular desse Estado. Criamos a Comissão Sul-mato-grossense de Folclore e participamos da Rede Folkcom de Pesquisas da Cátedra Unesco de Comunicação no Brasil, visando ampliar discussões, conhecer melhor e divulgar a Cultura Regional, pois acreditamos que a partir do momento que o homem permitir que se perca o vínculo com a Cultura Popular, estará perdendo também uma parte importante de sua historicidade.  A Unesco tem se preocupado, nos últimos anos, com as formas de preservação do saber popular, criando vários projetos e elaborando documentos contendo recomendações aos países do mundo, quanto à preservação desse “patrimônio imaterial” fornecido pela Cultura Popular. Futuramente, falaremos sobre essas recomendações.

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Mitologia e Imaginário Popular


Mitologia e Imaginário Popular
Marlei Sigrist
(publicado no site www.terrasms.com)


Você é crendeiro ou supersticioso? Se pensou na primeira resposta quer dizer que você acredita verdadeiramente em coisas imaginosas, fantásticas, sem explicação objetiva, mas que se impõem de maneira subjetiva como, por exemplo, acreditar em saci-pererê, mula-sem-cabeça, a mulher de branco e tantos outros mitos. Se optou pela segunda resposta, você se enquadra no grupo de pessoas que, mesmo não crendo verdadeiramente em tais coisas, têm lá suas dúvidas, é sempre bom desconfiar e, por isso, é melhor se prevenir do que remediar. Mas se não optou por nenhuma das respostas e parou para ler a matéria, é sinal de que o assunto lhe interessa pela relevância no campo do conhecimento, da poesia e filosofia impregnadas nas narrativas populares.

Não só as criações fantasiosas fazem parte do imaginário, como também as criações do mundo real, todas elas possuindo suas próprias lógicas e são instituídas socialmente para cumprirem uma função no grupo. Dentre as fantasias criadas encontram-se os mitos. Eles servem, primeiramente, de elementos orientadores e controladores da conduta social do grupo que os adota, porém, esses elementos aparecem camuflados e agem subliminarmente no inconsciente individual e coletivo. 

Cada civilização criou seus mitos de acordo com seu momento histórico. Os mitos gregos, por exemplo, ficaram na história, transformaram-se em literatura de primeira grandeza; hoje já não se acredita mais em Minotauro. No entanto, outros mitos, atuais, ocuparam o seu lugar e estão por aí amedrontando gentes de todos os continentes: mitos urbanos, dos campos, das florestas, dos mares, da terra, dos rios, do céu.....

O mestre Luis da Câmara Cascudo, também conhecido como o “pai do folclore brasileiro”, foi um grande estudioso da cultura popular e fez um belíssimo estudo, entre tantos, sobre os mitos brasileiros, agrupados por estados, contando suas origens e desdobramentos. Quem tiver a curiosidade de saber mais sobre o assunto poderá consultar a obra Geografia dos Mitos Brasileiros, daquele autor, e descobrirá um grande tesouro revelador do imaginário popular. Poderá saber que os mitos mais conhecidos em Mato Grosso do Sul também fazem parte das crenças dos habitantes de outros estados e até de outros países.

É o caso do “Pé de Garrafa”, um ente misterioso, um bicho-homem  que vive nas matas soltando gritos estarrecedores e atordoantes, para enlouquecer os menos avisados, muitos deles caçadores. Tem apenas um pé e é no formato do fundo de uma garrafa. Muitos o descrevem com cara de cachorro ou lobo e até mesmo de gorila, tem o corpo coberto de pêlos, com exceção do umbigo que é branco, da cor do couro que reveste seu corpo.

O livro de Cascudo traz alguns depoimentos, entre eles o de que esse bicho-homem, peludo, já era visto na fazenda Jacobina (MT) no século XIX. Do século XX, há uma transcrição da Revista do Brasil de 1920 que diz: “... o rastro está no chão, tal qual o sinal deixado no pó pelo fundo duma garrafa. Se o poaieiro (aquele que trabalha com a poaia) não é bom, está perdido, deu tantas voltas que nunca mais acha saída.Tem (o bicho) a figura dum homem; é completamente cabeludo e só possui uma única perna, a qual termina em casco em forma de fundo de garrafa. Eu nunca o vi, entretanto ‘vi’ e ouvi os gritos; e os senhores que vão à Mata da Poaia, hão de pelo menos, ver o rastro como eu.”

Outro mito que aparece na fala de alguns pantaneiros é a “Anta Sobrenatural”, um animal portador de atributos sobrenaturais que ora ajuda o homem a realizar proezas difíceis, ora é responsável pelo desaparecimento de pessoas. Também Câmara Cascudo encontrou narrações sobre a Anta-Cachorro, localizando-a entre o Pará e Goiás e explica: “Yapira-Yauara, nome que no tupi quer dizer Anta-Cachorro, animal gigantesco, que tem a forma da onça e as mãos com cascos como pé de anta, com as quais cava a terra, para derribar a árvore em cujo ramo se refugia o adversário, que dela foge”.

Segundo o autor há, no Rio Grande do Norte, a “Anta Esfolada” desde o século XVIII, pois nessa época, na região banhada pelo rio Curimataú, encontravam-se muitas antas, caça preferida dos moradores do entorno, pois seu couro sólido e resistente servia para a confecção de alpercatas e bruacas. Surgiu, então, a Anta fantástica, assombrando os moradores. Corria ligeiro, rodeava casas, roncava alto. Um caçador conseguindo prendê-la numa armadilha, decidiu quebrar-lhe o encanto esfolando-a viva, mas aos primeiros golpes do caçador o animal escapuliu deixando a pele em suas mãos. Por longos anos a Anta esfolada aparecia em todas as fazendas, espalhando o medo. O autor informa que o Município de Nova Cruz/RN, criado no ano de 1868, chamava-se, a princípio Anta Esfolada.

Existe, ainda, o “Come-Língua”, que é um mito encontrado na região do Bolsão/MS, mas seu domínio vai além da divisa do estado, adentrando Goiás, nos sertões do Araguaia, estendendo-se até o Tocantins. Naquele estado, o ente fantástico, pode ser um macaco, maior até que o gorila, uma espécie de King-Kong que ataca o gado dando-lhe murros, arrancando-lhes a língua, comendo-a como um delicioso prato. A variante apresentada em Mato Grosso do Sul é a de que o Come-Língua é um bicho-gente peludo, com funções idênticas as do anterior. Mas nasce de uma história que conta sobre um menino que todos os dias levava almoço, preparado pela mãe, para o pai que estava no serviço de campo. Um dia, levando um ensopado de língua, comeu toda a comida, nada sobrando para seu pai. Este, ao chegar em casa surrou a mãe por não lhe mandar o almoço no trabalho. A mãe, à beira da morte, rogou uma praga no filho, dizendo que ele passaria a vida toda comendo língua só para lembrar-se do que fez. Daí por diante, o menino desapareceu e só é visto nos pastos onde são encontradas reses mortas e sem língua, não se encontrando vestígios de ataque de animais ferozes que explique a ausência da língua. A realidade irá dizer que o surto de febre aftosa responde por esses achados, no entanto, o entendimento popular considera a ação do ser sobrenatural.

“Minhocão” é outro mito encontrado, principalmente no pantanal, porque este ser fantástico vive nos rios, assustando pescadores, afundando canoas e destruindo tudo a sua frente. Alípio Ribeiro, em 1908, dá seu depoimento: “disseram-me que em Corumbá havia uma pessoa que vira o Minhocão. Era um velho italiano, antigo capitão de navio que disse ter seu filho visto o tal bicho, que era preto e parecia um enorme bote de quilha para cima e que deixou seu rastro na lama e no aguapé”.  O mestre Cascudo afirma que o Minhocão é parte integrante da mitologia do Rio São Francisco e que explica fenômenos naturais de erosão. “As barrancas do rio, cortadas a pique, escavações fundas, covas circulares que lembram bocas de túneis, terras afundadas subitamente pelo solapamento das bases submersas, são os trabalhos do Minhocão”. 

Esse mito pertence ao ciclo da Cobra Grande – a Boiúna do Amazonas. As serpentes se prestam à simbologia fluvial. Vamos encontrá-las nas narrativas em todo o mundo e aqui, no Brasil, pode se transformar em um grande minhocão. Como se sabe, a Península Ibérica guarda, do período árabe, a influência oriental, asiática, constituindo material fantástico, de encantamento, irradiando-se pelos continentes por onde se estabeleceram portugueses e espanhóis e que somado ao material fantástico do índio pré-colombiano e do africano, resultou nas adaptações regionais. 

Há outros mitos como o “Pai do Mato”, que no pantanal é confundido, ou é semelhante ao Pé-de-garrafa, ou mesmo ao lobisomem, mas que em Goiás é um homem de pé de cabra e corpo peludo. Sua mão é semelhante a do macaco, tem barbicha, é de cor escura à semelhança do mato enlameado. Anda no bando dos porcos, cavalgando o maior. É apenas mortal no umbigo (semelhantemente ao Pé-de-garrafa) e tem urina azul. Raramente aparece ao homem.

Como é possível perceber, esses mitos podem orientar a vida das pessoas levando-as à preservação dos ecossistemas, dos valores e da moral instituídos pelos grupos sociais. Como orientadores e reguladores sociais, permitem a criação de regras de conduta e punições para quem contrariá-las, assim como faz a religião e o judiciário. Enfim, são formas diferenciadas de organizações sociais visíveis sob diferentes óticas.


Bibliografia complementar consultada:
CASCUDO, Luis da Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. São Paulo: Itatiaia: Edusp, 1983.





segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Turismo e a importância da Cultura Popular




TURISMO E A IMPORTÂNCIA DA CULTURA POPULAR

Marlei Sigrist*  e  Roberto Benjamin**
* Presidente da Comissão sul-mato-grossense de Folclore 
** Presidente da Comissão Nacional de Folclore

Pelo turismo, o homem procura comunicar-se com seu semelhante e conhecer a maneira peculiar de ser dos habitantes da regiões visitadas. O turista procura atrativos naturais e culturais que não estão interligados ao seu cotidiano e, por isso, a comercialização da cultura local (diferente daquela do forasteiro) tornou-se um dos pontos mais fortes para o turismo. Assim, um dos objetivos na oferta de produtos é o de estimular os turistas e oferecer-lhes a oportunidade de conhecer os habitantes da região, seus modos de vida, suas atividades profissionais (como a agricultura, a pecuária, a pesca); suas atividades sociais (dos encontros marcados pelas festas, festivais e competições); suas atividades estéticas (das construções, ornamentações, produção de arte em todas as linguagens e de artesanato); suas marcas históricas (condensadas nos museus e exposições); sua  gastronomia (da culinária tradicional à sofisticada) e todas essas modalidades gravadas pela produção literária de maneira poética, histórica, formal ou alternativamente na camada popular.

A expectativa sobre os efeitos da massificação dos produtos culturais, provocados pelo processo de globalização, alimentada principalmente pelos meios de comunicação, leva os estudiosos da Cultura a questionarem  sobre o possível desaparecimento de manifestações culturais populares. Enquanto isso, alguns profissionais do turismo vendem viagens, cujo slogan é “conheça, antes que acabe”. Sabemos que estamos vivendo o mundo das transformações rápidas e isso nos afeta, principalmente em relação ao já vivido, ao já estabelecido pelas gerações anteriores, gerando angústias, dúvidas e sensação de perdas antecipadas.

Mas, como se sabe, Folclore é entendido como cultura popular tradicional, que é dinâmico e evolui com as mudanças da sociedade. Folclore não é sobrevivência, mas cultura viva. As manifestações folclóricas são criação do povo brasileiro, embora algumas não sejam criações espontâneas, pois foram recriadas e incorporadas às tradições brasileiras. 

A circulação dos fatos culturais é uma realidade inegável e desde o início da colonização procedeu-se o amálgama da contribuição das diferentes etnias e das diferentes classes sociais, das instituições políticas, militares e, especialmente, religiosas. São, por exemplo, os pastoris religiosos, implantados a partir dos rituais de catequese, incorporados na sua forma original e re-inventados na contrafação obscena do pastoril profano. Em alguns desses pastoris, foi verificada a introdução de temas de óperas levadas à cena, no Brasil, no século XIX por companhias européias. São os festejos de Reis de Congo, da Festa do Rosário, que incorporaram a música e a dança africanas e conservaram nos maracatus os trajes da realeza européia. São os batalhões de bacamarteiros, com formação militar referente ao período da Guerra do Paraguai, trajando de cangaceiros. 

Quando se buscam os signos da identidade nacional e das identidades regionais, é para o folclore que todos se dirigem, tanto os órgãos de governo como as empresas comerciais e industriais, os meios de comunicação de massa, especialmente os voltados para a promoção do turismo. Todavia, a preocupação pela preservação e incentivo destas manifestações não corresponde a este interesse. Os lucros auferidos com a utilização dos signos da cultura popular nunca são revertidos em benefício dos seus autores. Não há uma política para o Folclore. 

No Brasil, a preocupação com a proteção aos bens culturais expandiu-se a partir do Movimento Modernista, de 1922.
Em relação aos bens imateriais, há mais de meio século, por iniciativa do escritor e diplomata Renato Almeida, criou-se a Comissão Nacional de Folclore.
Documentos oficiais brasileiros têm apontado como principais problemas que interferem na continuidade e na manutenção das expressões da cultura tradicional o turismo predatório, sua apropriação inadequada pela mídia, a uniformização de produtos decorrente do processo de globalização da economia, a apropriação industrial desses conhecimentos e a comercialização inadequada, sem remuneração aos autores, o que, aliás, confirma, em relação ao Brasil, o que já havia sido indicado na reunião da UNESCO, em Praga (República Checa), no ano de 1997. 

Além dos fatores acima apontados, é necessário destacar o desaparecimento da base material dos bens imateriais, a perda de tradicionais fontes de financiamento, a perda de funções, as migrações, o impacto da comunicação de massas, a espetacularização dos rituais, o desinteresse dos órgãos públicos, a perda da auto-estima etc.:

- as atividades do fazer dependem, essencialmente, da existência da matéria-prima; assim, a cerâmica não subsistirá sem o acesso às jazidas de argila; 
- os pequenos comerciantes, tradicionais financiadores de grupos populares, que obtinham retornos financeiros com festejos populares, estão desaparecendo, substituídos pelas redes das grandes lojas e hipermercados; os mestres, que tinham acesso aos donos das bodegas e armarinhos, não têm como chegar até à França, à Holanda e aos Estados Unidos ou aos centros financeiros de São Paulo, onde são decididos os empregos das verbas destinadas a incentivos culturais; 
- as mudanças tecnológicas levam à perda de função de algumas manifestações populares, por exemplo, o uso do fogão a gás, a concorrência do alumínio e do plástico põem em risco a continuidade da cerâmica utilitária e da cestaria; 
- as migrações dispersam a população das comunidades, tornando inviável a reunião dos brincantes que viviam em grupos de vizinhança; 
- a comunicação de massas tem projetado modelos culturais onde predominam os aspectos visuais sobre os demais valores das manifestações populares; assim, as escolas-de-samba do Rio de Janeiro e São Paulo e o boi-bumbá de Parintins (AM) estão se tornando referenciais para a compreensão dos espetáculos populares;
- além dos espetáculos populares, rituais populares, de natureza comunitária estão sendo convertidos em espetáculos de massa por iniciativa de órgãos públicos, promoção do turismo e meios de comunicação de massa; é o caso das cerimônias conhecidas como “panela-de-Iemanjá” e várias outras.
- mesmo utilizando os signos da cultura popular, órgãos públicos estaduais e municipais destinam ínfimos recursos ao pagamento de apresentações dos espetáculos populares e supervalorizam os elementos provenientes da comunicação de massa; assim, por exemplo, o total da verba destinada às agremiações populares do Recife (cerca de 200) é inferior ao cachê pago a um único cantor e sua troupe para um espetáculo de massa, durante o mesmo carnaval; 
- todos esses fatores  e – mais – a redução do seu público ou de consumidores (caso do artesanato), tem levado os portadores da tradição a considerar o seu patrimônio cultural como indesejado pela sociedade, inviabilizando a  transmissão do seu conhecimento para as novas gerações, cujos membros, aliás, estão sendo mais motivados para participar da cultura de massas.

Percebe-se, então, que por um lado assistimos às ingerências e imposições e, por outro, sabemos ser necessária a divulgação das manifestações populares, para que não só o turista as conheça, mas também os moradores da própria região. Recorro às palavras de Saul Martins (1991) quando diz que o Folclore estimula o Turismo, dá-lhe calor e vida. Em compensação, o aplauso do turista entusiasma o povo, dá-lhe prestígio, alimenta o Folclore.  No entanto, os órgãos do governo, as empresas industriais e comerciais e as redes de comunicação não apenas reconhecem em seus discursos a necessidade da preservação da identidade, como têm explorado certas manifestações como as festas: de carnaval, de boi, de santos e outros folguedos populares em proveito próprio. 

Na prática, entretanto, pouco têm contribuído para o objetivo de sua preservação e, pelo contrário, algumas vezes têm ensejado a descaracterização, o empobrecimento e a desvalorização das tradições brasileiras. Essas posturas e pensamentos não são exclusivamente nossos, mas  encontrados em toda  América Latina.

As ações mercadológicas do turismo geralmente apresentam espetáculos populares aos turistas dos países desenvolvidos de forma inexata e romântica, contribuindo para a criação de uma imagem simplista e estereotipada.

Convém lembrar que o turismo é uma atividade apreciada por diversas classes, idades e categorias de profissionais. Cada uma delas está ligada a distintos interesses. A cultura popular oferece diversas possibilidades aos turistas: arte e artesanato, festas, danças, música, culinária, linguagem, literatura, usos e costumes.

Adeus a Laura Della Monica





ADEUS  À  LAURA  DELLA  MONICA

(Laura faleceu em 11 de setembro de 2001)

Marlei Sigrist


Texto encaminhado à Câmara Municipal de Olímpia-SP e ao Comitê Organizador do Festival do Folclore de Olímpia-SP


Há exatamente um mês, a data de 11 de setembro significou para o mundo um dos momentos de maior violência da história da humanidade, mas significou também para nós, folcloristas brasileiros, uma data que registrou a perda de uma extraordinária pesquisadora, Laura Della Monica. Paulistana por paixão e cidadã olimpiense por homenagem, dedicou toda sua vida aos estudos do Folclore Brasileiro. Em todos esses anos, soube, amar, pesquisar, valorizar, reverenciar e divulgar a cultura do povo.

Seu currículo atesta o valor do seu trabalho, não só para São Paulo, mas para o Brasil, que pode ser aquilatado pelo número de publicações, entre livros e artigos, além das participações em incontáveis congressos, simpósios, projetos, festivais e cursos ministrados. Sobre isso, muitos outros colegas da área que conviveram com Laura poderão discorrer com maior propriedade. Minha pretensão é apenas a de testemunhar um período de convivência pessoal com a mestra nas últimas duas décadas.

Conheci Laura no início do ano 1980, na PUC de Campinas, quando tornei-me sua aluna no curso de Artes. Despertou minha atenção seu vasto  conhecimento sobre a matéria estudada, sem no entanto, deixar-se afetar por isso, mantendo postura ética ao tratar das diferentes correntes estudadas. Suas  atitudes eram simples e solidárias em relação a todos e, por isso, conseguia reunir um grande número de alunos interessados a sua volta.

Posteriormente, ela atendeu ao meu chamado para ministrar um curso em Campo Grande, na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, onde eu era responsável pela disciplina de Folclore Brasileiro. A partir daí, nasceu uma amizade saudável e duradoura, possibilitando conhecê-la melhor e também o seu trabalho. Lembro-me do respeito que Laura guardava pelo seu inspirador maior – Mário de Andrade – com o qual estava pesquisando, quando da morte do mestre. "A partir daí, já estava envolvida e nunca mais parei", conforme suas palavras no Manual do Folclore, um trabalho marcado pela seriedade, comprometimento e entusiasmo contagiante, qualidades essenciais ao educador. 

Como afirmei, ela gostava de São Paulo como ninguém, defendia-o, exaltava-o sempre que podia, principalmente nas visitas técnicas feitas em locais públicos e em palestras. Observei que até sua bagagem de viagem distinguia-se das demais, porque levava uma fitinha de seda nas cores da bandeira paulista (listras) presa à alça ou ao pacote.  Residia no coração de São Paulo, levando-me à difícil compreensão de como Laura, nos últimos anos, conseguia driblar o cotidiano do centro da cidade como a velocidade do trânsito nas travessias das ruas, o corre-corre do metrô e das linhas dos ônibus que ela se servia para transitar de um campus universitário para outro.

Acompanhei, de perto, seu empenho e entusiasmo por ocasião de seu doutoramento em Turismo, com tema relevante para a Museologia, ocasião em que buscava incessantemente material escasso para a defesa do seu trabalho, conseguindo transformar texto e álbum em material relevante para os estudiosos da área. No entanto, por essa ocasião, ressentia-se da falta de tempo para acompanhar mais de perto os assuntos que gostava – o folclore, sofrendo, inclusive com as perdas sucessivas de companheiros de luta.

Contudo, ela recebeu o reconhecimento do público e de seus pares, por diversas ocasiões, registrado nos títulos acumulados ao longo de sua carreira. Recentemente, em agosto deste ano, durante o I Seminário de Folkcomunicação, em Belo Horizonte, Dr. Saul Martins, homenageado do dia, durante sua fala  prestou homenagem a oitenta colegas pesquisadores do Brasil com os quais conviveu (a maior parte já falecida). Uma das pessoas homenageadas por ele foi Laura Della Monica, pela seriedade, pelo companheirismo e pela fibra com que sempre tratou a cultura popular brasileira no âmbito acadêmico e das comissões de Folclore. Poderia reportar-me também às palavras do Dr. Saul na apresentação da segunda edição do Manual do Folclore: 


Não têm conta as vezes que nos sentamos juntos para discutir conceitos cambiantes, ocasiões em que também recebi lições proveitosas sobre aspectos do seu maior agrado e familiaridade. Ou participantes de encontros nacionais e regionais e, permanentemente, desde 1951, nos ligamos para consultas sobre matéria controversa e ajuda mútua ou troca de informações. É longo o espaço percorrido e valioso o saldo que ficou de tal reciprocidade.


Outro reconhecimento importante, que me ocorre, foi marcado pela outorga do título Cidadã Olimpiense, pelos relevantes serviços prestados ao Município de Olímpia, no acompanhamento anual do Festival de Folclore daquele município. 

Cabe aqui um depoimento pessoal sobre o quanto significava o Festival de Olímpia e a eterna amizade dispensada ao amigo José Sant’Anna, apesar de algumas vezes discordar de alguns pontos, o que considerava extremamente salutar. Confessou-me  sua infinita tristeza quando o velho amigo, praticamente, faleceu em seus braços, durante uma das centenas de reuniões para a organização do evento. 

Por tudo isso, achei que era o momento de Laura Della Monica fazer um balanço, que com certeza seria apaixonado, da tradição olimpiense dessa festa, que faz parte do calendário turístico oficial do Estado de São Paulo, para apresentar na IV Folkcom (Conferência Brasileira de Folkcomunicação) /Cátedra Unesco de Comunicação no Brasil / UMESP, realizada em Campo Grande/MS, no período de 26 a 29 de junho/01. Laura atendeu ao convite e se propôs a analisar os 34 anos de festival que estiveram sob os cuidados do Prof. José Sant’Anna. Produziu, então, um texto voltado aos objetivos da Conferência, com vistas a ampliá-lo muito em breve, assim que entregasse os últimos trabalhos da editora para a qual escrevia. Infelizmente não deu tempo de concretizar essa idéia. O texto, sua última produção acadêmica, faz parte do acervo da IV Folkcom, que será publicado em CD. No entanto, apreciaria muito se o mesmo fosse publicado no próximo Anuário do Festival de Folclore de Olímpia, como forma de homenagem a quem muito contribuiu com sua obra e seu exemplo para Olímpia, para São Paulo e, em geral, para o conhecimento científico sobre a cultura popular.

      Campo Grande/MS, 11 de outubro de 2001.


Marlei Sigrist
    Presidente da Comissão Sul-mato-grossense de Folclore
 Profª do Departamento de Arte e Comunicação / UFMS



Cantigas de Ninar Tenebrosas !?!

           


Cantigas de ninar ternas e tenebrosas !?!
Marlei Sigrist (introdução)
Tais Garnier (artigo)


Resumo: A jornalista Tais Garnier expôs a abordagem geral, introdutória da pesquisa de Ana Lúcia Cavani Jorge sobre os acalantos usados pelas mães para embalar seus filhos, falando também sobre a solidão, como uma ponte para o amor adulto. Na seqüência, outros tópicos desvendam o funcionamento do inconsciente, na utilização dos acalantos.



Desde que a internet foi criada, vez em sempre circula nas redes sociais a tão comentada notícia de que as canções de ninar brasileiras são “malvadas” – afirmações de um ilustre desconhecido brasileiro, morando nos Estados Unidos e trabalhando como baby sitter. Há alguns anos, escreveu-me uma leitora, ex-aluna, agora professora  preocupada com a situação, solicitando-me um artigo sobre a questão. Na época, para ela e todo o grupo que formou uma cadeia interminável de “repassadores” (mas nenhum parou para opinar, ou questionar a validade, apenas ela), respondi apressadamente o seguinte:

Acho que esse sujeito aí está sofrendo da síndrome da pouca filosofia e da quase nada de história, porque se ele pesquisasse um pouco (como se deve - e não com achismos), saberia fazer uma leitura dos bastidores da nossa história que marcaram os negros escravos - sofridos sim e medrosos também, porque para eles só restava o tão conhecido "escreveu não leu, pau comeu" e que eram justamente os responsáveis por embalarem as crianças de seus donos nas casas grandes. Seria bom que ele lesse um pouco de Gilberto Freire, de Darcy Ribeiro, antes de fazer os julgamentos inconsistentes. Assim ele poderia contar, lá onde mora atualmente, um pouco da história de seu país, o quanto o colonizador foi opressor com os negros (tanto quanto nos Estados Unidos) Será que as "eguinhas pocotós" e os "arrochas" são melhores hoje? Ou quem sabe as músicas lascivas da Madona??? Talvez do Michel Jackson (que adorava criancinhas)???  

E assim encerrei o assunto, mesmo porque não achei que fosse necessário correr para defender o que muitos estudiosos já constataram (e publicaram). Essas histórias não são de hoje, haja vista que na década de 50, muitos “moralistas” americanos publicaram obras, tentando coibir e controlar as crianças quanto a leituras e audição de certas histórias, por julgarem perniciosas e sedutoras de inocentes.

Mas, revendo as publicações, encontrei um artigo/resenha, escrito pela jornalista Tais Garnier em 1984, e publicado em revista da Coordenadoria de Atividades Culturais da Universidade de São Paulo, que julgo ser super atual para a discussão do assunto. Trata-se de um texto do tipo resenha e entrevista com a pesquisadora Ana Lúcia Cavani Jorge, sobre sua dissertação de mestrado na área de psicologia (outro ponto vista interessante, além do histórico, para reflexão do tema). Por isso, julgo oportuna a transcrição total desse artigo.


Susto e ternura nas cantigas de ninar: a vida que vence a morte, a solidão que faz crescer, a separação necessária. Esse e outros significados, profundos e poéticos, estão presentes quando a mãe embala o filho com uma velha cantiga.
Por: Tais Garnier

Nana, nenê / que a cuca vem pega / papai ta na roça / e mamãe no cafezá

Por que os acalantos, feitos para acalmar e fazer dormir, cantados com tanta ternura, contêm sempre um elemento aterrorizador?

Ana Lúcia Cavani Jorge faz esta pergunta numa tarde de 1977, no campus da Universidade de São Paulo/USP, enquanto procura temas para sua dissertação de Mestrado em Psicologia. Dali, até a conclusão de seu trabalho, que acaba versando exatamente sobre os acalantos, Ana percorre um longo caminho à procura de uma resposta para a pergunta.

Nessa procura ela decidiu, em primeiro lugar, verificar se realmente os acalantos sempre continham personagens terríficos. Através de entrevistas e coletâneas folclóricas, confirmou a presença do terrível na maioria deles. Porém, em seu levantamento observou que muitas pessoas nunca haviam notado o elemento aterrorizante nas canções que elas próprias cantavam. O fato era causa de estranheza. “São justamente as mães mais carinhosas que acalantam os filhos”, uma delas comentou.

Ana Lúcia observa ainda que ao falar sobre o acalanto (este ato de fazer dormir uma criança embalando-a no colo e entoando uma canção de ninar), algumas pessoas tomam uma expressão diferente – iluminam-se – como lembrando de algo muito bom. Outras, principalmente mulheres muito velhas, esquivam-se do assunto. 'O que a gente cantava?' elas diziam. 'Ah a gente canta qualquer coisa'. 'Mas que qualquer coisa?' Lúcia insistia. 'Ah, essas musiquinhas de criança'.

Segundo Ana, até estudiosos e pesquisadores ignoram solenemente o assunto, como prova a escassa literatura a respeito. E ela pergunta: 'será que o acalanto é algo tão banal que não merece ser estudado? Ou, ao contrário, exatamente por mexer com conteúdos emocionais muito profundos, amedronta as pessoas?'

Exceção à regra, Ana Lúcia dedicou sete anos a seu estudo, analisando 190 acalantos de várias partes do Brasil, América Latina, Espanha, Portugal, além de textos e depoimentos sobre o tema. Ela situa o acalanto em suas várias dimensões – melodia, texto, ritmo, contexto (local, hora, contato físico) – elementos pelos quais Ana delineia uma função para o acalanto, até então nunca mencionada nos textos a que teve acesso e que vai muito além do fazer dormir. Autora da primeira dissertação sobre o assunto de que se tem conhecimento, delicado mesmo, uma vez que lida com o profundo do ser humano.

Solidão: ponte para o amor adulto

O acalanto tem como função mais óbvia o fazer dormir, acalmando através de uma espécie de encantamento, o bebê inquieto. O que é esta inquietude que não deixa o nenê dormir, mesmo tendo sono? Por que o medo?

Conforme explica Ana em sua dissertação, a hora de dormir é o momento de se separar da mãe. Experiência dolorosa e temida, pois, para a criança, a mãe é seu universo. Sua existência não só física, mas também psicológica, depende daquela. Ela não quer perder aquele mundo quente de carinho, proteção e aconchego. A separação, na hora de dormir, é o primeiro protótipo da hora da morte. E a mãe? Ela também sente prazer em ser tudo para o seu filho. E talvez ambos gostassem de perpetuar essa doce relação de completude. 

Porém, continua Ana, a mãe precisa atender a outras solicitações, como trabalhar fora, por exemplo. Até o trabalho doméstico – cuidar das próprias necessidades do filho, como de sua roupa e comida – a distância dele. Mas o fator decisivo na imposição de um limite à relação mãe/filho é a existência de um Outro – aquele que é representado pela figura do pai. Com a chegada do Outro, a mãe deixa de ser mãe para ser, mais que isto, mulher.

Esta, ao mesmo tempo em que é autora do corte na relação de completude com seu filho, sofre com isto. Sua posição é ambígua e conflitante. Forças contrárias estão em luta em seu interior. Para a criança, inicialmente a separação é assustadora: existindo como reflexo da mãe e, portanto, baseando sua existência nesta, a separação reveste-se de um aspecto ameaçador. Se só sou com minha mãe, sem ela há o risco de desintegrar-me. Claro que isto não é pensado racionalmente, mas vivido de forma inconsciente. 

Porém, afirma Ana, este limite à união completa entre mãe e filho, aparentemente impiedoso, na verdade é sadio e libertador para ambas as partes. O filho terá que enfrentar sua solidão, pois ela é condição básica para que este se torne um sujeito, um ser independente. E só através dessa subjetivação (tornar-se sujeito) poderá mais tarde reviver o amor adulto.

Através de suas pesquisas, Ana Lúcia observou que os acalantos reproduzem justamente a relação mãe-filho aqui descrita, só que de forma simbólica e poética. Deste modo, falam do amor da mãe pelo filho como desdobramento do narcisismo materno:

Dorme engraçadinho / queridinho da mamãe / que ele é bonitinho / o filhinho da mamãe.

Falam também do medo que a mãe sente do perigo que vem de fora, e quer levar-lhe o filho: a cuca, o papão, o tutu-marambáia, o bicho-tatu. E referem-se à exorcização do perigo:

Vai-te coca, vai-te-coca / sai de cima do telhado / deixa o menino dormir / o seu soninho sossegado / Ô, ôô, ôô ...

A face que corta dá talho sem dor
As canções de ninar falam, ainda, da aceitação da solidão/separação, que é aterradora e necessária – caminho para a subjetivação, o desenvolvimento. O filho está sozinho e com frio – sem o quente dos pais – mas a solidão (a faca que corta) 'dá talho sem dor' :

Estava Maria / na beira do rio / lavando os paninhos / do seu bento fio (filho).
Maria lavava / São José estendia / chorava o menino / do frio que fazia.
Chora, meu menino / chora, meu amô / que a faca que corta / dá golpe sem dô.

Assim, de acordo com a pesquisadora, os acalantos ajudam mãe e filho a enfrentarem as dificuldades de sua relação, preparando a ambos para a vivência do processo de desenvolvimento, de subjetivação que começa a ocorrer na infância e se estende por toda a vida. Processo que não se dá de maneira racional, mas ao nível do inconsciente, profundo, e por isso mesmo muito mais efetivo.

Os acalantos, refletindo a posição paradoxal da mãe em relação ao filho – a tendência à união versus a necessidade de separação -, elaboram, ao nível simbólico, os conteúdos emocionais que estão em jogo. Dessa maneira, a cuca e todos os seus correspondentes (o tutu, o tutu-marambaia, o bicho-papão, o murucutu, o carrapato, o boto), são personagens indefinidos que abrigam a ambiguidade da relação a que se referem: vêm de fora, são terríveis, vão tirar o filho de sua mãe, 'vem pegá'. Mas, também, são representantes da liberdade de escolha de um novo objeto de amor fora do par mãe-filho. São o símbolo do amor adulto, equivalente, nesse sentido, ao príncipe encantado das estórias de fada, mas visto do ângulo da criança. Isto é, primitivizado, como o sapo cururu ou o boto da canção de projeção do folclore:

Tajapanema chorou no terreiro / Tajapanema chorou no terreiro / e a virgem morena sumiu no costeiro. / Foi boto sinhá, foi boto sinhô. Que veio tentá e a moça levo / No tar dançará aquele douto /  foi boto sinhá, foi boto  sinhô.
Tapajanema se pôs a chorar / quem tem filha moça é bom vigia / O boto não dorme no fundo do rio / seu dom é enorme, quem quer que o viu / que diga, que informe se lhe resistiu./ O boto não dorme no fundo do rio. (da canção popular, com letra: Antonio Tavernard e música: Waldemar Henrique, título: Foi boto, sinhá).

O não também pode ser generoso
A respeito de possíveis indicações de conduta para as mães, a psicóloga enfatiza, em primeiro lugar, a necessidade de que estas tenham em suas vidas outras coisas importantes além do filho. A existência de outros interesses, como um emprego, uma arte e principalmente um amor adulto, é que vai tornar possível que ela determine o limite na relação com a criança.

Ana reforça ainda, a noção da função paradoxal da mãe – função de sim e de não. Sim é o prazer, a completude, a doação, a proteção e carinho, função tão importante quanto a do não, que impõe o corte. 'É importante que a mãe pegue a criança no colo', diz Ana, e 'não tenha medo de sentir prazer ao amamentar e ter seu corpo sugado. Este prazer faz parte da relação'. Além disso, 'é bom que ela se ocupe diretamente do filho, em qualquer idade, de preferência antes de dormir, mas também em outras horas. Que possam conversar e que o pai participe disso'.

Por outro lado, lembra ela 'é preciso estar apoiada no amor de um outro para afastar-se de maneira generosa na hora certa. Amar um outro é respeitá-lo, falar em nome dele. Em nome de uma outra Lei. Assim, este não deixa de ser perverso para tornar-se um não de limite, que remete a criança mais além da Lei do pai e da mãe, à Lei social'. E, continua, 'deve ainda aceitar, às vezes, a ajuda de avós, vizinhas ou empregadas com quem tenha um bom relacionamento'.

Ana faz menção a livros de puericultura franceses e americanos da década de 50, que consideram o acalanto prejudicial. Refere-se, ainda, a mães que não acalantam por convicções ideológicas, vendo em tal ato uma tradição burguesa rançosa. Outras o evitam por temerem deixar a criança mal-acostumada ou por suporem que poderia se assustar com o elemento terrível das canções.

Em respostas a tantas prevenções, Ana reafirma a importância do acalanto para a elaboração dos conflitos inerentes ao desenvolvimento e acrescenta que não se deve temer que este seja causa de susto e, assim, 'cantar o que se tem vontade, não tendo preconceito contra cantigas tradicionais, pois foram selecionadas pela memória de seguidas gerações, como aquelas que mais se adequaram à função materna paradoxal de completude e corte'. E termina: 'a intuição é importante na escolha do texto, no jeito de cantar, no ritmo... no ser mãe, enfim'.