domingo, 22 de fevereiro de 2015

Mitologia e Imaginário Popular


Mitologia e Imaginário Popular
Marlei Sigrist
(publicado no site www.terrasms.com)


Você é crendeiro ou supersticioso? Se pensou na primeira resposta quer dizer que você acredita verdadeiramente em coisas imaginosas, fantásticas, sem explicação objetiva, mas que se impõem de maneira subjetiva como, por exemplo, acreditar em saci-pererê, mula-sem-cabeça, a mulher de branco e tantos outros mitos. Se optou pela segunda resposta, você se enquadra no grupo de pessoas que, mesmo não crendo verdadeiramente em tais coisas, têm lá suas dúvidas, é sempre bom desconfiar e, por isso, é melhor se prevenir do que remediar. Mas se não optou por nenhuma das respostas e parou para ler a matéria, é sinal de que o assunto lhe interessa pela relevância no campo do conhecimento, da poesia e filosofia impregnadas nas narrativas populares.

Não só as criações fantasiosas fazem parte do imaginário, como também as criações do mundo real, todas elas possuindo suas próprias lógicas e são instituídas socialmente para cumprirem uma função no grupo. Dentre as fantasias criadas encontram-se os mitos. Eles servem, primeiramente, de elementos orientadores e controladores da conduta social do grupo que os adota, porém, esses elementos aparecem camuflados e agem subliminarmente no inconsciente individual e coletivo. 

Cada civilização criou seus mitos de acordo com seu momento histórico. Os mitos gregos, por exemplo, ficaram na história, transformaram-se em literatura de primeira grandeza; hoje já não se acredita mais em Minotauro. No entanto, outros mitos, atuais, ocuparam o seu lugar e estão por aí amedrontando gentes de todos os continentes: mitos urbanos, dos campos, das florestas, dos mares, da terra, dos rios, do céu.....

O mestre Luis da Câmara Cascudo, também conhecido como o “pai do folclore brasileiro”, foi um grande estudioso da cultura popular e fez um belíssimo estudo, entre tantos, sobre os mitos brasileiros, agrupados por estados, contando suas origens e desdobramentos. Quem tiver a curiosidade de saber mais sobre o assunto poderá consultar a obra Geografia dos Mitos Brasileiros, daquele autor, e descobrirá um grande tesouro revelador do imaginário popular. Poderá saber que os mitos mais conhecidos em Mato Grosso do Sul também fazem parte das crenças dos habitantes de outros estados e até de outros países.

É o caso do “Pé de Garrafa”, um ente misterioso, um bicho-homem  que vive nas matas soltando gritos estarrecedores e atordoantes, para enlouquecer os menos avisados, muitos deles caçadores. Tem apenas um pé e é no formato do fundo de uma garrafa. Muitos o descrevem com cara de cachorro ou lobo e até mesmo de gorila, tem o corpo coberto de pêlos, com exceção do umbigo que é branco, da cor do couro que reveste seu corpo.

O livro de Cascudo traz alguns depoimentos, entre eles o de que esse bicho-homem, peludo, já era visto na fazenda Jacobina (MT) no século XIX. Do século XX, há uma transcrição da Revista do Brasil de 1920 que diz: “... o rastro está no chão, tal qual o sinal deixado no pó pelo fundo duma garrafa. Se o poaieiro (aquele que trabalha com a poaia) não é bom, está perdido, deu tantas voltas que nunca mais acha saída.Tem (o bicho) a figura dum homem; é completamente cabeludo e só possui uma única perna, a qual termina em casco em forma de fundo de garrafa. Eu nunca o vi, entretanto ‘vi’ e ouvi os gritos; e os senhores que vão à Mata da Poaia, hão de pelo menos, ver o rastro como eu.”

Outro mito que aparece na fala de alguns pantaneiros é a “Anta Sobrenatural”, um animal portador de atributos sobrenaturais que ora ajuda o homem a realizar proezas difíceis, ora é responsável pelo desaparecimento de pessoas. Também Câmara Cascudo encontrou narrações sobre a Anta-Cachorro, localizando-a entre o Pará e Goiás e explica: “Yapira-Yauara, nome que no tupi quer dizer Anta-Cachorro, animal gigantesco, que tem a forma da onça e as mãos com cascos como pé de anta, com as quais cava a terra, para derribar a árvore em cujo ramo se refugia o adversário, que dela foge”.

Segundo o autor há, no Rio Grande do Norte, a “Anta Esfolada” desde o século XVIII, pois nessa época, na região banhada pelo rio Curimataú, encontravam-se muitas antas, caça preferida dos moradores do entorno, pois seu couro sólido e resistente servia para a confecção de alpercatas e bruacas. Surgiu, então, a Anta fantástica, assombrando os moradores. Corria ligeiro, rodeava casas, roncava alto. Um caçador conseguindo prendê-la numa armadilha, decidiu quebrar-lhe o encanto esfolando-a viva, mas aos primeiros golpes do caçador o animal escapuliu deixando a pele em suas mãos. Por longos anos a Anta esfolada aparecia em todas as fazendas, espalhando o medo. O autor informa que o Município de Nova Cruz/RN, criado no ano de 1868, chamava-se, a princípio Anta Esfolada.

Existe, ainda, o “Come-Língua”, que é um mito encontrado na região do Bolsão/MS, mas seu domínio vai além da divisa do estado, adentrando Goiás, nos sertões do Araguaia, estendendo-se até o Tocantins. Naquele estado, o ente fantástico, pode ser um macaco, maior até que o gorila, uma espécie de King-Kong que ataca o gado dando-lhe murros, arrancando-lhes a língua, comendo-a como um delicioso prato. A variante apresentada em Mato Grosso do Sul é a de que o Come-Língua é um bicho-gente peludo, com funções idênticas as do anterior. Mas nasce de uma história que conta sobre um menino que todos os dias levava almoço, preparado pela mãe, para o pai que estava no serviço de campo. Um dia, levando um ensopado de língua, comeu toda a comida, nada sobrando para seu pai. Este, ao chegar em casa surrou a mãe por não lhe mandar o almoço no trabalho. A mãe, à beira da morte, rogou uma praga no filho, dizendo que ele passaria a vida toda comendo língua só para lembrar-se do que fez. Daí por diante, o menino desapareceu e só é visto nos pastos onde são encontradas reses mortas e sem língua, não se encontrando vestígios de ataque de animais ferozes que explique a ausência da língua. A realidade irá dizer que o surto de febre aftosa responde por esses achados, no entanto, o entendimento popular considera a ação do ser sobrenatural.

“Minhocão” é outro mito encontrado, principalmente no pantanal, porque este ser fantástico vive nos rios, assustando pescadores, afundando canoas e destruindo tudo a sua frente. Alípio Ribeiro, em 1908, dá seu depoimento: “disseram-me que em Corumbá havia uma pessoa que vira o Minhocão. Era um velho italiano, antigo capitão de navio que disse ter seu filho visto o tal bicho, que era preto e parecia um enorme bote de quilha para cima e que deixou seu rastro na lama e no aguapé”.  O mestre Cascudo afirma que o Minhocão é parte integrante da mitologia do Rio São Francisco e que explica fenômenos naturais de erosão. “As barrancas do rio, cortadas a pique, escavações fundas, covas circulares que lembram bocas de túneis, terras afundadas subitamente pelo solapamento das bases submersas, são os trabalhos do Minhocão”. 

Esse mito pertence ao ciclo da Cobra Grande – a Boiúna do Amazonas. As serpentes se prestam à simbologia fluvial. Vamos encontrá-las nas narrativas em todo o mundo e aqui, no Brasil, pode se transformar em um grande minhocão. Como se sabe, a Península Ibérica guarda, do período árabe, a influência oriental, asiática, constituindo material fantástico, de encantamento, irradiando-se pelos continentes por onde se estabeleceram portugueses e espanhóis e que somado ao material fantástico do índio pré-colombiano e do africano, resultou nas adaptações regionais. 

Há outros mitos como o “Pai do Mato”, que no pantanal é confundido, ou é semelhante ao Pé-de-garrafa, ou mesmo ao lobisomem, mas que em Goiás é um homem de pé de cabra e corpo peludo. Sua mão é semelhante a do macaco, tem barbicha, é de cor escura à semelhança do mato enlameado. Anda no bando dos porcos, cavalgando o maior. É apenas mortal no umbigo (semelhantemente ao Pé-de-garrafa) e tem urina azul. Raramente aparece ao homem.

Como é possível perceber, esses mitos podem orientar a vida das pessoas levando-as à preservação dos ecossistemas, dos valores e da moral instituídos pelos grupos sociais. Como orientadores e reguladores sociais, permitem a criação de regras de conduta e punições para quem contrariá-las, assim como faz a religião e o judiciário. Enfim, são formas diferenciadas de organizações sociais visíveis sob diferentes óticas.


Bibliografia complementar consultada:
CASCUDO, Luis da Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. São Paulo: Itatiaia: Edusp, 1983.





segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Turismo e a importância da Cultura Popular




TURISMO E A IMPORTÂNCIA DA CULTURA POPULAR

Marlei Sigrist*  e  Roberto Benjamin**
* Presidente da Comissão sul-mato-grossense de Folclore 
** Presidente da Comissão Nacional de Folclore

Pelo turismo, o homem procura comunicar-se com seu semelhante e conhecer a maneira peculiar de ser dos habitantes da regiões visitadas. O turista procura atrativos naturais e culturais que não estão interligados ao seu cotidiano e, por isso, a comercialização da cultura local (diferente daquela do forasteiro) tornou-se um dos pontos mais fortes para o turismo. Assim, um dos objetivos na oferta de produtos é o de estimular os turistas e oferecer-lhes a oportunidade de conhecer os habitantes da região, seus modos de vida, suas atividades profissionais (como a agricultura, a pecuária, a pesca); suas atividades sociais (dos encontros marcados pelas festas, festivais e competições); suas atividades estéticas (das construções, ornamentações, produção de arte em todas as linguagens e de artesanato); suas marcas históricas (condensadas nos museus e exposições); sua  gastronomia (da culinária tradicional à sofisticada) e todas essas modalidades gravadas pela produção literária de maneira poética, histórica, formal ou alternativamente na camada popular.

A expectativa sobre os efeitos da massificação dos produtos culturais, provocados pelo processo de globalização, alimentada principalmente pelos meios de comunicação, leva os estudiosos da Cultura a questionarem  sobre o possível desaparecimento de manifestações culturais populares. Enquanto isso, alguns profissionais do turismo vendem viagens, cujo slogan é “conheça, antes que acabe”. Sabemos que estamos vivendo o mundo das transformações rápidas e isso nos afeta, principalmente em relação ao já vivido, ao já estabelecido pelas gerações anteriores, gerando angústias, dúvidas e sensação de perdas antecipadas.

Mas, como se sabe, Folclore é entendido como cultura popular tradicional, que é dinâmico e evolui com as mudanças da sociedade. Folclore não é sobrevivência, mas cultura viva. As manifestações folclóricas são criação do povo brasileiro, embora algumas não sejam criações espontâneas, pois foram recriadas e incorporadas às tradições brasileiras. 

A circulação dos fatos culturais é uma realidade inegável e desde o início da colonização procedeu-se o amálgama da contribuição das diferentes etnias e das diferentes classes sociais, das instituições políticas, militares e, especialmente, religiosas. São, por exemplo, os pastoris religiosos, implantados a partir dos rituais de catequese, incorporados na sua forma original e re-inventados na contrafação obscena do pastoril profano. Em alguns desses pastoris, foi verificada a introdução de temas de óperas levadas à cena, no Brasil, no século XIX por companhias européias. São os festejos de Reis de Congo, da Festa do Rosário, que incorporaram a música e a dança africanas e conservaram nos maracatus os trajes da realeza européia. São os batalhões de bacamarteiros, com formação militar referente ao período da Guerra do Paraguai, trajando de cangaceiros. 

Quando se buscam os signos da identidade nacional e das identidades regionais, é para o folclore que todos se dirigem, tanto os órgãos de governo como as empresas comerciais e industriais, os meios de comunicação de massa, especialmente os voltados para a promoção do turismo. Todavia, a preocupação pela preservação e incentivo destas manifestações não corresponde a este interesse. Os lucros auferidos com a utilização dos signos da cultura popular nunca são revertidos em benefício dos seus autores. Não há uma política para o Folclore. 

No Brasil, a preocupação com a proteção aos bens culturais expandiu-se a partir do Movimento Modernista, de 1922.
Em relação aos bens imateriais, há mais de meio século, por iniciativa do escritor e diplomata Renato Almeida, criou-se a Comissão Nacional de Folclore.
Documentos oficiais brasileiros têm apontado como principais problemas que interferem na continuidade e na manutenção das expressões da cultura tradicional o turismo predatório, sua apropriação inadequada pela mídia, a uniformização de produtos decorrente do processo de globalização da economia, a apropriação industrial desses conhecimentos e a comercialização inadequada, sem remuneração aos autores, o que, aliás, confirma, em relação ao Brasil, o que já havia sido indicado na reunião da UNESCO, em Praga (República Checa), no ano de 1997. 

Além dos fatores acima apontados, é necessário destacar o desaparecimento da base material dos bens imateriais, a perda de tradicionais fontes de financiamento, a perda de funções, as migrações, o impacto da comunicação de massas, a espetacularização dos rituais, o desinteresse dos órgãos públicos, a perda da auto-estima etc.:

- as atividades do fazer dependem, essencialmente, da existência da matéria-prima; assim, a cerâmica não subsistirá sem o acesso às jazidas de argila; 
- os pequenos comerciantes, tradicionais financiadores de grupos populares, que obtinham retornos financeiros com festejos populares, estão desaparecendo, substituídos pelas redes das grandes lojas e hipermercados; os mestres, que tinham acesso aos donos das bodegas e armarinhos, não têm como chegar até à França, à Holanda e aos Estados Unidos ou aos centros financeiros de São Paulo, onde são decididos os empregos das verbas destinadas a incentivos culturais; 
- as mudanças tecnológicas levam à perda de função de algumas manifestações populares, por exemplo, o uso do fogão a gás, a concorrência do alumínio e do plástico põem em risco a continuidade da cerâmica utilitária e da cestaria; 
- as migrações dispersam a população das comunidades, tornando inviável a reunião dos brincantes que viviam em grupos de vizinhança; 
- a comunicação de massas tem projetado modelos culturais onde predominam os aspectos visuais sobre os demais valores das manifestações populares; assim, as escolas-de-samba do Rio de Janeiro e São Paulo e o boi-bumbá de Parintins (AM) estão se tornando referenciais para a compreensão dos espetáculos populares;
- além dos espetáculos populares, rituais populares, de natureza comunitária estão sendo convertidos em espetáculos de massa por iniciativa de órgãos públicos, promoção do turismo e meios de comunicação de massa; é o caso das cerimônias conhecidas como “panela-de-Iemanjá” e várias outras.
- mesmo utilizando os signos da cultura popular, órgãos públicos estaduais e municipais destinam ínfimos recursos ao pagamento de apresentações dos espetáculos populares e supervalorizam os elementos provenientes da comunicação de massa; assim, por exemplo, o total da verba destinada às agremiações populares do Recife (cerca de 200) é inferior ao cachê pago a um único cantor e sua troupe para um espetáculo de massa, durante o mesmo carnaval; 
- todos esses fatores  e – mais – a redução do seu público ou de consumidores (caso do artesanato), tem levado os portadores da tradição a considerar o seu patrimônio cultural como indesejado pela sociedade, inviabilizando a  transmissão do seu conhecimento para as novas gerações, cujos membros, aliás, estão sendo mais motivados para participar da cultura de massas.

Percebe-se, então, que por um lado assistimos às ingerências e imposições e, por outro, sabemos ser necessária a divulgação das manifestações populares, para que não só o turista as conheça, mas também os moradores da própria região. Recorro às palavras de Saul Martins (1991) quando diz que o Folclore estimula o Turismo, dá-lhe calor e vida. Em compensação, o aplauso do turista entusiasma o povo, dá-lhe prestígio, alimenta o Folclore.  No entanto, os órgãos do governo, as empresas industriais e comerciais e as redes de comunicação não apenas reconhecem em seus discursos a necessidade da preservação da identidade, como têm explorado certas manifestações como as festas: de carnaval, de boi, de santos e outros folguedos populares em proveito próprio. 

Na prática, entretanto, pouco têm contribuído para o objetivo de sua preservação e, pelo contrário, algumas vezes têm ensejado a descaracterização, o empobrecimento e a desvalorização das tradições brasileiras. Essas posturas e pensamentos não são exclusivamente nossos, mas  encontrados em toda  América Latina.

As ações mercadológicas do turismo geralmente apresentam espetáculos populares aos turistas dos países desenvolvidos de forma inexata e romântica, contribuindo para a criação de uma imagem simplista e estereotipada.

Convém lembrar que o turismo é uma atividade apreciada por diversas classes, idades e categorias de profissionais. Cada uma delas está ligada a distintos interesses. A cultura popular oferece diversas possibilidades aos turistas: arte e artesanato, festas, danças, música, culinária, linguagem, literatura, usos e costumes.

Adeus a Laura Della Monica





ADEUS  À  LAURA  DELLA  MONICA

(Laura faleceu em 11 de setembro de 2001)

Marlei Sigrist


Texto encaminhado à Câmara Municipal de Olímpia-SP e ao Comitê Organizador do Festival do Folclore de Olímpia-SP


Há exatamente um mês, a data de 11 de setembro significou para o mundo um dos momentos de maior violência da história da humanidade, mas significou também para nós, folcloristas brasileiros, uma data que registrou a perda de uma extraordinária pesquisadora, Laura Della Monica. Paulistana por paixão e cidadã olimpiense por homenagem, dedicou toda sua vida aos estudos do Folclore Brasileiro. Em todos esses anos, soube, amar, pesquisar, valorizar, reverenciar e divulgar a cultura do povo.

Seu currículo atesta o valor do seu trabalho, não só para São Paulo, mas para o Brasil, que pode ser aquilatado pelo número de publicações, entre livros e artigos, além das participações em incontáveis congressos, simpósios, projetos, festivais e cursos ministrados. Sobre isso, muitos outros colegas da área que conviveram com Laura poderão discorrer com maior propriedade. Minha pretensão é apenas a de testemunhar um período de convivência pessoal com a mestra nas últimas duas décadas.

Conheci Laura no início do ano 1980, na PUC de Campinas, quando tornei-me sua aluna no curso de Artes. Despertou minha atenção seu vasto  conhecimento sobre a matéria estudada, sem no entanto, deixar-se afetar por isso, mantendo postura ética ao tratar das diferentes correntes estudadas. Suas  atitudes eram simples e solidárias em relação a todos e, por isso, conseguia reunir um grande número de alunos interessados a sua volta.

Posteriormente, ela atendeu ao meu chamado para ministrar um curso em Campo Grande, na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, onde eu era responsável pela disciplina de Folclore Brasileiro. A partir daí, nasceu uma amizade saudável e duradoura, possibilitando conhecê-la melhor e também o seu trabalho. Lembro-me do respeito que Laura guardava pelo seu inspirador maior – Mário de Andrade – com o qual estava pesquisando, quando da morte do mestre. "A partir daí, já estava envolvida e nunca mais parei", conforme suas palavras no Manual do Folclore, um trabalho marcado pela seriedade, comprometimento e entusiasmo contagiante, qualidades essenciais ao educador. 

Como afirmei, ela gostava de São Paulo como ninguém, defendia-o, exaltava-o sempre que podia, principalmente nas visitas técnicas feitas em locais públicos e em palestras. Observei que até sua bagagem de viagem distinguia-se das demais, porque levava uma fitinha de seda nas cores da bandeira paulista (listras) presa à alça ou ao pacote.  Residia no coração de São Paulo, levando-me à difícil compreensão de como Laura, nos últimos anos, conseguia driblar o cotidiano do centro da cidade como a velocidade do trânsito nas travessias das ruas, o corre-corre do metrô e das linhas dos ônibus que ela se servia para transitar de um campus universitário para outro.

Acompanhei, de perto, seu empenho e entusiasmo por ocasião de seu doutoramento em Turismo, com tema relevante para a Museologia, ocasião em que buscava incessantemente material escasso para a defesa do seu trabalho, conseguindo transformar texto e álbum em material relevante para os estudiosos da área. No entanto, por essa ocasião, ressentia-se da falta de tempo para acompanhar mais de perto os assuntos que gostava – o folclore, sofrendo, inclusive com as perdas sucessivas de companheiros de luta.

Contudo, ela recebeu o reconhecimento do público e de seus pares, por diversas ocasiões, registrado nos títulos acumulados ao longo de sua carreira. Recentemente, em agosto deste ano, durante o I Seminário de Folkcomunicação, em Belo Horizonte, Dr. Saul Martins, homenageado do dia, durante sua fala  prestou homenagem a oitenta colegas pesquisadores do Brasil com os quais conviveu (a maior parte já falecida). Uma das pessoas homenageadas por ele foi Laura Della Monica, pela seriedade, pelo companheirismo e pela fibra com que sempre tratou a cultura popular brasileira no âmbito acadêmico e das comissões de Folclore. Poderia reportar-me também às palavras do Dr. Saul na apresentação da segunda edição do Manual do Folclore: 


Não têm conta as vezes que nos sentamos juntos para discutir conceitos cambiantes, ocasiões em que também recebi lições proveitosas sobre aspectos do seu maior agrado e familiaridade. Ou participantes de encontros nacionais e regionais e, permanentemente, desde 1951, nos ligamos para consultas sobre matéria controversa e ajuda mútua ou troca de informações. É longo o espaço percorrido e valioso o saldo que ficou de tal reciprocidade.


Outro reconhecimento importante, que me ocorre, foi marcado pela outorga do título Cidadã Olimpiense, pelos relevantes serviços prestados ao Município de Olímpia, no acompanhamento anual do Festival de Folclore daquele município. 

Cabe aqui um depoimento pessoal sobre o quanto significava o Festival de Olímpia e a eterna amizade dispensada ao amigo José Sant’Anna, apesar de algumas vezes discordar de alguns pontos, o que considerava extremamente salutar. Confessou-me  sua infinita tristeza quando o velho amigo, praticamente, faleceu em seus braços, durante uma das centenas de reuniões para a organização do evento. 

Por tudo isso, achei que era o momento de Laura Della Monica fazer um balanço, que com certeza seria apaixonado, da tradição olimpiense dessa festa, que faz parte do calendário turístico oficial do Estado de São Paulo, para apresentar na IV Folkcom (Conferência Brasileira de Folkcomunicação) /Cátedra Unesco de Comunicação no Brasil / UMESP, realizada em Campo Grande/MS, no período de 26 a 29 de junho/01. Laura atendeu ao convite e se propôs a analisar os 34 anos de festival que estiveram sob os cuidados do Prof. José Sant’Anna. Produziu, então, um texto voltado aos objetivos da Conferência, com vistas a ampliá-lo muito em breve, assim que entregasse os últimos trabalhos da editora para a qual escrevia. Infelizmente não deu tempo de concretizar essa idéia. O texto, sua última produção acadêmica, faz parte do acervo da IV Folkcom, que será publicado em CD. No entanto, apreciaria muito se o mesmo fosse publicado no próximo Anuário do Festival de Folclore de Olímpia, como forma de homenagem a quem muito contribuiu com sua obra e seu exemplo para Olímpia, para São Paulo e, em geral, para o conhecimento científico sobre a cultura popular.

      Campo Grande/MS, 11 de outubro de 2001.


Marlei Sigrist
    Presidente da Comissão Sul-mato-grossense de Folclore
 Profª do Departamento de Arte e Comunicação / UFMS



Cantigas de Ninar Tenebrosas !?!

           


Cantigas de ninar ternas e tenebrosas !?!
Marlei Sigrist (introdução)
Tais Garnier (artigo)


Resumo: A jornalista Tais Garnier expôs a abordagem geral, introdutória da pesquisa de Ana Lúcia Cavani Jorge sobre os acalantos usados pelas mães para embalar seus filhos, falando também sobre a solidão, como uma ponte para o amor adulto. Na seqüência, outros tópicos desvendam o funcionamento do inconsciente, na utilização dos acalantos.



Desde que a internet foi criada, vez em sempre circula nas redes sociais a tão comentada notícia de que as canções de ninar brasileiras são “malvadas” – afirmações de um ilustre desconhecido brasileiro, morando nos Estados Unidos e trabalhando como baby sitter. Há alguns anos, escreveu-me uma leitora, ex-aluna, agora professora  preocupada com a situação, solicitando-me um artigo sobre a questão. Na época, para ela e todo o grupo que formou uma cadeia interminável de “repassadores” (mas nenhum parou para opinar, ou questionar a validade, apenas ela), respondi apressadamente o seguinte:

Acho que esse sujeito aí está sofrendo da síndrome da pouca filosofia e da quase nada de história, porque se ele pesquisasse um pouco (como se deve - e não com achismos), saberia fazer uma leitura dos bastidores da nossa história que marcaram os negros escravos - sofridos sim e medrosos também, porque para eles só restava o tão conhecido "escreveu não leu, pau comeu" e que eram justamente os responsáveis por embalarem as crianças de seus donos nas casas grandes. Seria bom que ele lesse um pouco de Gilberto Freire, de Darcy Ribeiro, antes de fazer os julgamentos inconsistentes. Assim ele poderia contar, lá onde mora atualmente, um pouco da história de seu país, o quanto o colonizador foi opressor com os negros (tanto quanto nos Estados Unidos) Será que as "eguinhas pocotós" e os "arrochas" são melhores hoje? Ou quem sabe as músicas lascivas da Madona??? Talvez do Michel Jackson (que adorava criancinhas)???  

E assim encerrei o assunto, mesmo porque não achei que fosse necessário correr para defender o que muitos estudiosos já constataram (e publicaram). Essas histórias não são de hoje, haja vista que na década de 50, muitos “moralistas” americanos publicaram obras, tentando coibir e controlar as crianças quanto a leituras e audição de certas histórias, por julgarem perniciosas e sedutoras de inocentes.

Mas, revendo as publicações, encontrei um artigo/resenha, escrito pela jornalista Tais Garnier em 1984, e publicado em revista da Coordenadoria de Atividades Culturais da Universidade de São Paulo, que julgo ser super atual para a discussão do assunto. Trata-se de um texto do tipo resenha e entrevista com a pesquisadora Ana Lúcia Cavani Jorge, sobre sua dissertação de mestrado na área de psicologia (outro ponto vista interessante, além do histórico, para reflexão do tema). Por isso, julgo oportuna a transcrição total desse artigo.


Susto e ternura nas cantigas de ninar: a vida que vence a morte, a solidão que faz crescer, a separação necessária. Esse e outros significados, profundos e poéticos, estão presentes quando a mãe embala o filho com uma velha cantiga.
Por: Tais Garnier

Nana, nenê / que a cuca vem pega / papai ta na roça / e mamãe no cafezá

Por que os acalantos, feitos para acalmar e fazer dormir, cantados com tanta ternura, contêm sempre um elemento aterrorizador?

Ana Lúcia Cavani Jorge faz esta pergunta numa tarde de 1977, no campus da Universidade de São Paulo/USP, enquanto procura temas para sua dissertação de Mestrado em Psicologia. Dali, até a conclusão de seu trabalho, que acaba versando exatamente sobre os acalantos, Ana percorre um longo caminho à procura de uma resposta para a pergunta.

Nessa procura ela decidiu, em primeiro lugar, verificar se realmente os acalantos sempre continham personagens terríficos. Através de entrevistas e coletâneas folclóricas, confirmou a presença do terrível na maioria deles. Porém, em seu levantamento observou que muitas pessoas nunca haviam notado o elemento aterrorizante nas canções que elas próprias cantavam. O fato era causa de estranheza. “São justamente as mães mais carinhosas que acalantam os filhos”, uma delas comentou.

Ana Lúcia observa ainda que ao falar sobre o acalanto (este ato de fazer dormir uma criança embalando-a no colo e entoando uma canção de ninar), algumas pessoas tomam uma expressão diferente – iluminam-se – como lembrando de algo muito bom. Outras, principalmente mulheres muito velhas, esquivam-se do assunto. 'O que a gente cantava?' elas diziam. 'Ah a gente canta qualquer coisa'. 'Mas que qualquer coisa?' Lúcia insistia. 'Ah, essas musiquinhas de criança'.

Segundo Ana, até estudiosos e pesquisadores ignoram solenemente o assunto, como prova a escassa literatura a respeito. E ela pergunta: 'será que o acalanto é algo tão banal que não merece ser estudado? Ou, ao contrário, exatamente por mexer com conteúdos emocionais muito profundos, amedronta as pessoas?'

Exceção à regra, Ana Lúcia dedicou sete anos a seu estudo, analisando 190 acalantos de várias partes do Brasil, América Latina, Espanha, Portugal, além de textos e depoimentos sobre o tema. Ela situa o acalanto em suas várias dimensões – melodia, texto, ritmo, contexto (local, hora, contato físico) – elementos pelos quais Ana delineia uma função para o acalanto, até então nunca mencionada nos textos a que teve acesso e que vai muito além do fazer dormir. Autora da primeira dissertação sobre o assunto de que se tem conhecimento, delicado mesmo, uma vez que lida com o profundo do ser humano.

Solidão: ponte para o amor adulto

O acalanto tem como função mais óbvia o fazer dormir, acalmando através de uma espécie de encantamento, o bebê inquieto. O que é esta inquietude que não deixa o nenê dormir, mesmo tendo sono? Por que o medo?

Conforme explica Ana em sua dissertação, a hora de dormir é o momento de se separar da mãe. Experiência dolorosa e temida, pois, para a criança, a mãe é seu universo. Sua existência não só física, mas também psicológica, depende daquela. Ela não quer perder aquele mundo quente de carinho, proteção e aconchego. A separação, na hora de dormir, é o primeiro protótipo da hora da morte. E a mãe? Ela também sente prazer em ser tudo para o seu filho. E talvez ambos gostassem de perpetuar essa doce relação de completude. 

Porém, continua Ana, a mãe precisa atender a outras solicitações, como trabalhar fora, por exemplo. Até o trabalho doméstico – cuidar das próprias necessidades do filho, como de sua roupa e comida – a distância dele. Mas o fator decisivo na imposição de um limite à relação mãe/filho é a existência de um Outro – aquele que é representado pela figura do pai. Com a chegada do Outro, a mãe deixa de ser mãe para ser, mais que isto, mulher.

Esta, ao mesmo tempo em que é autora do corte na relação de completude com seu filho, sofre com isto. Sua posição é ambígua e conflitante. Forças contrárias estão em luta em seu interior. Para a criança, inicialmente a separação é assustadora: existindo como reflexo da mãe e, portanto, baseando sua existência nesta, a separação reveste-se de um aspecto ameaçador. Se só sou com minha mãe, sem ela há o risco de desintegrar-me. Claro que isto não é pensado racionalmente, mas vivido de forma inconsciente. 

Porém, afirma Ana, este limite à união completa entre mãe e filho, aparentemente impiedoso, na verdade é sadio e libertador para ambas as partes. O filho terá que enfrentar sua solidão, pois ela é condição básica para que este se torne um sujeito, um ser independente. E só através dessa subjetivação (tornar-se sujeito) poderá mais tarde reviver o amor adulto.

Através de suas pesquisas, Ana Lúcia observou que os acalantos reproduzem justamente a relação mãe-filho aqui descrita, só que de forma simbólica e poética. Deste modo, falam do amor da mãe pelo filho como desdobramento do narcisismo materno:

Dorme engraçadinho / queridinho da mamãe / que ele é bonitinho / o filhinho da mamãe.

Falam também do medo que a mãe sente do perigo que vem de fora, e quer levar-lhe o filho: a cuca, o papão, o tutu-marambáia, o bicho-tatu. E referem-se à exorcização do perigo:

Vai-te coca, vai-te-coca / sai de cima do telhado / deixa o menino dormir / o seu soninho sossegado / Ô, ôô, ôô ...

A face que corta dá talho sem dor
As canções de ninar falam, ainda, da aceitação da solidão/separação, que é aterradora e necessária – caminho para a subjetivação, o desenvolvimento. O filho está sozinho e com frio – sem o quente dos pais – mas a solidão (a faca que corta) 'dá talho sem dor' :

Estava Maria / na beira do rio / lavando os paninhos / do seu bento fio (filho).
Maria lavava / São José estendia / chorava o menino / do frio que fazia.
Chora, meu menino / chora, meu amô / que a faca que corta / dá golpe sem dô.

Assim, de acordo com a pesquisadora, os acalantos ajudam mãe e filho a enfrentarem as dificuldades de sua relação, preparando a ambos para a vivência do processo de desenvolvimento, de subjetivação que começa a ocorrer na infância e se estende por toda a vida. Processo que não se dá de maneira racional, mas ao nível do inconsciente, profundo, e por isso mesmo muito mais efetivo.

Os acalantos, refletindo a posição paradoxal da mãe em relação ao filho – a tendência à união versus a necessidade de separação -, elaboram, ao nível simbólico, os conteúdos emocionais que estão em jogo. Dessa maneira, a cuca e todos os seus correspondentes (o tutu, o tutu-marambaia, o bicho-papão, o murucutu, o carrapato, o boto), são personagens indefinidos que abrigam a ambiguidade da relação a que se referem: vêm de fora, são terríveis, vão tirar o filho de sua mãe, 'vem pegá'. Mas, também, são representantes da liberdade de escolha de um novo objeto de amor fora do par mãe-filho. São o símbolo do amor adulto, equivalente, nesse sentido, ao príncipe encantado das estórias de fada, mas visto do ângulo da criança. Isto é, primitivizado, como o sapo cururu ou o boto da canção de projeção do folclore:

Tajapanema chorou no terreiro / Tajapanema chorou no terreiro / e a virgem morena sumiu no costeiro. / Foi boto sinhá, foi boto sinhô. Que veio tentá e a moça levo / No tar dançará aquele douto /  foi boto sinhá, foi boto  sinhô.
Tapajanema se pôs a chorar / quem tem filha moça é bom vigia / O boto não dorme no fundo do rio / seu dom é enorme, quem quer que o viu / que diga, que informe se lhe resistiu./ O boto não dorme no fundo do rio. (da canção popular, com letra: Antonio Tavernard e música: Waldemar Henrique, título: Foi boto, sinhá).

O não também pode ser generoso
A respeito de possíveis indicações de conduta para as mães, a psicóloga enfatiza, em primeiro lugar, a necessidade de que estas tenham em suas vidas outras coisas importantes além do filho. A existência de outros interesses, como um emprego, uma arte e principalmente um amor adulto, é que vai tornar possível que ela determine o limite na relação com a criança.

Ana reforça ainda, a noção da função paradoxal da mãe – função de sim e de não. Sim é o prazer, a completude, a doação, a proteção e carinho, função tão importante quanto a do não, que impõe o corte. 'É importante que a mãe pegue a criança no colo', diz Ana, e 'não tenha medo de sentir prazer ao amamentar e ter seu corpo sugado. Este prazer faz parte da relação'. Além disso, 'é bom que ela se ocupe diretamente do filho, em qualquer idade, de preferência antes de dormir, mas também em outras horas. Que possam conversar e que o pai participe disso'.

Por outro lado, lembra ela 'é preciso estar apoiada no amor de um outro para afastar-se de maneira generosa na hora certa. Amar um outro é respeitá-lo, falar em nome dele. Em nome de uma outra Lei. Assim, este não deixa de ser perverso para tornar-se um não de limite, que remete a criança mais além da Lei do pai e da mãe, à Lei social'. E, continua, 'deve ainda aceitar, às vezes, a ajuda de avós, vizinhas ou empregadas com quem tenha um bom relacionamento'.

Ana faz menção a livros de puericultura franceses e americanos da década de 50, que consideram o acalanto prejudicial. Refere-se, ainda, a mães que não acalantam por convicções ideológicas, vendo em tal ato uma tradição burguesa rançosa. Outras o evitam por temerem deixar a criança mal-acostumada ou por suporem que poderia se assustar com o elemento terrível das canções.

Em respostas a tantas prevenções, Ana reafirma a importância do acalanto para a elaboração dos conflitos inerentes ao desenvolvimento e acrescenta que não se deve temer que este seja causa de susto e, assim, 'cantar o que se tem vontade, não tendo preconceito contra cantigas tradicionais, pois foram selecionadas pela memória de seguidas gerações, como aquelas que mais se adequaram à função materna paradoxal de completude e corte'. E termina: 'a intuição é importante na escolha do texto, no jeito de cantar, no ritmo... no ser mãe, enfim'.




O tcham e o Dia do Folclore

         



O Tcham e o Dia do Folclore
Marlei Sigrist

Hoje é dia 22 de agosto e nesta data comemora-se o Dia do Folclore. Em todo o mundo festejam-se as tradições dos povos que receberam de seus antepassados os costumes mais fortes e marcantes da vida diária, tanto no sentido material, quanto imaterial. 

No Brasil, de acordo com Laura Della Mônica, em seu “Manual do Folclore”, ainda na primeira metade do século XX “a moda de se imitar o que era original veio dar uma confusão aos estudiosos menos avisados. Ninguém sabia o que era folclórico e a Comissão Nacional de Folclore insistia na realização de Congressos que tratassem de dissipar dúvidas e orientar os caminhos da pesquisa. Criou-se a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, em 1958, no Ministério da Educação e Cultura”. Somente em 1965 o governo brasileiro instituiu a data de 22 de agosto em comemoração ao Dia Nacional do Folclore, recordando o lançamento pela primeira vez, em 1846, da palavra Folk-lore, pelo arqueólogo inglês William John Thoms.

A partir daí, cada estado foi adotando a mesma prática e inserindo, no calendário regional, os festejos dessa data e mais, incluíram os estudos do Folclore nos programas curriculares das escolas e dos cursos de graduação de Estudos Sociais e Educação Artística, com recomendação para os demais cursos da área de Humanas.

Portanto, desde a adoção dessa prática, todos os anos os professores se vêem às voltas com as comemorações do “Mês”, da “Semana”, do “Dia” do Folclore. Esses profissionais abnegados que, hoje, enfrentam todo tipo de problemas como baixos salários, burocracias ultrapassadas, falta de verbas para realização de projetos consistentes, espaços físicos inadequados, violência até dentro das escolas e tantas outras coisas mais, programam-se, também, para as comemorações dessa data.

Assim como em qualquer meio, existem os bons profissionais, conscientes da responsabilidade que têm com o seu trabalho, com o seu público, com o seu interlocutor, enfim, com aqueles que dependem de sua informação; mas existem também os chamados “encostadores de barriga”, aqueles que sempre dão um jeitinho de burlar a vigilância e tentam enganar (ou pensam enganar) o chefe, a empresa, a instituição, os clientes, os alunos.

É nesse momento que me chegam notícias de que em algumas escolas ainda há professores (talvez de áreas que não humanas), tendo que carregar uma cruz que não desejaram – responsabilizaram-se por algumas turmas na escola e “devem” trabalhar a temática por imposições superiores. É aí que (agora recorro às frases feitas) “o caldo entorna”, ou “a porca torce o rabo”, ou ainda “a vaca vai para o brejo”. Lá, estão alunas preparando a festança, ensaiando grupos de tcham, de eguinha pocotó, de pagode, de funk e de arrocha e de outros tantos ritmos ditados pela televisão.

Logo se nota a diferença entre o profissional da educação que está sempre preocupado em estudar, pesquisar, reciclar o seu fazer e aqueles que se acostumaram ao uso do caderninho amarelado pelo tempo, cheio de fórmulas imutáveis, que dá menos trabalho para preparar sua aula (ela já está pronta há muitos anos) e não é necessário pensar, reformular, criticar (em outras palavras – usar a massa cinzenta de seu cérebro).

Os ritmos acima mencionados podem até agradar ao público, formado por adolescentes (o que é bastante questionável), mas não se justifica usá-los nas comemorações folclóricas, pois não possuem as características fundamentais para tal. Eles pertencem à cultura de massa, totalmente distante das tradições, da cultura de raiz.

Acredito que um pouco de estudo, de leitura sobre o assunto e opiniões de especialistas, irão ajudar aqueles profissionais a recolocarem o trem nos trilhos.

Então, por favor (eis meu grande apelo) não chamem de folclore o que não é. Façam suas festas com tchans e tchuns, pocotós e pocotuns, mas em outras datas, com outros títulos, outros conteúdos (talvez sobre a influência da mídia na vida das pessoas) e assim cada coisa ficará no seu lugar, sem subterfúgios, sem enganações e, principalmente, sem frustrações.

No entanto, quero saudar a todos os professores conscientes (que são a maioria), engajados com a tarefa de educar em sentido amplo, pelo empenho que demonstram ao realizarem bons trabalhos, dignos de destaque. Esse trabalho vai para as ruas, em Campo Grande/MS, no dia 26 de agosto – dia do aniversário da cidade, no momento do desfile cívico apresentado pelas escolas, numa iniciativa do Projeto CIM, da Fundação Barbosa Rodrigues e da Secretaria Municipal de Educação.

Parabéns Campo Grande, parabéns professores, pela utilização correta do tema Folclore nessa data.

Cabeças de vento? To fora!



CABEÇAS DE VENTO?  TO FORA !
Marlei Sigrist

Resumo:
Noutro dia, reunida com algumas pessoas “entendidas” de cultura regional, precisei expor sobre a culinária pantaneira. Análises daqui e de lá, comentários equivocados e opiniões furadas, contribuíram para um encontro improdutivo. Aí, ...


Noutro dia, reunida com algumas pessoas “entendidas” de cultura regional, precisei expor sobre a culinária pantaneira. Análises daqui e de lá, comentários equivocados e opiniões furadas, contribuíram para um encontro improdutivo.

Investi sessenta dias de consultas às publicações existentes para comparar com as minhas pesquisas de campo dos últimos vinte anos, com as anotações empíricas de trinta e cinco anos de convivência, no sentido pleno de viver com, em contato direto com pessoas que habitam o Pantanal (no meio rural, no meio urbano) e, por último, comparar com dados fornecidos por instituições de pesquisas. De posse desse material, o objetivo de qualquer pesquisador é cruzar todos os dados e extrair a essência, a estrutura principal, observar os pontos comuns. Feito isso, cheguei a cento e trinta e duas receitas selecionadas, representantes da culinária tradicional pantaneira e oitenta e seis delas foram destacadas como as mais importantes.

Toda essa explicação serve para que o leitor entenda as reservas e o controle que se tem num trabalho sério de levantamento de dados, visando à publicação; porque depois que esta for efetivada, não se tem mais o controle sobre os dados, papel aceita qualquer coisa e o sistema virtual também.

Pois bem, voltando ao início da história, as pessoas que se encontravam reunidas estavam ali para validar as receitas. Que bom, pensei eu, assim teremos outras contribuições significativas! Qual não foi a minha decepção, os questionamentos correram por conta dos “achismos”, como por exemplo, o prato chamado de puchero levou uma das figuras ali presentes a dizer que o nome deveria estar errado, pois conhecia o prato cozido e era o que normalmente servia a seus clientes. Achava, ainda, que a culinária pantaneira só existe a partir da chegada dos mineiros em Mato Grosso.

Não vou elencar todas as questões levantadas a partir da experiência individual de cada um. Se houvessem quinhentas pessoas reunidas, cada uma delas teria seu palpite pessoal, acreditando, até, que o seu modo de ver as coisas é o mais acertado; isso acontece, geralmente, com a cultura popular. Estão erradas? Eu diria que não. É como contar uma história de saci, cada um tem a sua, mas há que se considerar que existe um ponto em comum a todas elas. É isso que torna consistente a tradição de um povo. E confiável.

Mais uma vez, voltando ao centro da discussão, a minha interlocutora desconhecia o desenrolar da história do Pantanal; não sabia que os espanhóis foram os primeiros conquistadores a se estabelecerem naquela área; que por dois séculos eles transitaram por ali e deixaram suas marcas culturais, junto aos indígenas, às missões. Também não imaginava que, durante a navegação da Bacia do Prata, os países platinos trouxeram suas culturas e com elas a comida, o traje, o linguajar e, com certeza, o famoso puchero, tão apreciado na Argentina, mas que foi adaptado ao local. Portanto, o cozido, trazido de Portugal, ficou lá por Minas, Rio, São Paulo, enfim, lugares desbravados, desde a origem, por portugueses.

E, quando outra interlocutora confessou que achava nossa comida pobre (visualmente sem atrativo), principalmente pensando nas grandes produções editoriais, então, não havia mais o que se discutir ou tentar chegar a um consenso. Percebi, naquele momento, que ela havia perdido (ou nunca teve) a sensibilidade, tão presente  na obra de Manoel de Barros, que traduz a beleza do caramujo e outras “coisas miúdas” do Pantanal, que estão além da compreensão das pessoas insensíveis.

Os estudos sobre grupos sociais mostram que toda e qualquer expressão (a comida é uma delas) deve estar em acordo com o contexto onde se manifesta e que cada formulação pressupõe tempo e lugar adequados. É a contextualização da manifestação (no caso – a comida), que irá traduzir o seu valor de uso e estético.

A prerrogativa, das ciências humanas e sociais, de que o olhar do cientista deve estar destituído de todo e qualquer preconceito, em relação ao seu objeto de análise, se cumpre a partir da tomada de uma postura ética, honesta, em relação ao seu trabalho. O estudo da cultura não se ocupa da comida idealizada, perfeita, mas da comida criada pelas necessidades das pessoas do lugar, possuindo uma estética própria, um paladar formado a partir das relações estabelecidas e instituídas socialmente no local e com sua geografia. 

As manifestações populares (entre elas a comida) têm sido objeto de análise das Ciências Humanas. Se o resultado desses trabalhos não chega ao conhecimento do público (e aí ele se apóia nos “achismos”), é porque a política de divulgação das ciências no Brasil é muito deficiente, os recursos nunca chegam para atender esses fins. O resultado é um público mal informado. 
Às vezes, têm-se que lutar “contra a maré”, mas diante de “cabeças de vento, tô fora!!!”
 

Literatura Oral e a Lenda do Mar de Xaraés




LITERATURA ORAL E A LENDA DE XARAYES
Marlei Sigrist

RESUMO:
No Brasil encontram-se milhares de narrativas populares, dentre elas as lendas ocupam lugar importante. No Pantanal, por exemplo, os habitantes contam histórias sobre o Mar de Xaraés.



As narrativas populares reúnem uma série de contos, lendas, histórias as mais variadas, que expressam o imaginário da sociedade em que vivemos, revelando comportamentos, entusiasmos, juízos, medos e valores de épocas passadas e presentes. Elas também nos fazem reunir as necessidades primordiais da humanidade: a aprendizagem da vida, a busca incessante, o elemento controlador, a grande aventura humana. É um alimento, testemunho dos sonhos e das aspirações. Também parecem ser ambivalentes: ora incitam à resignação, ao fanatismo, ora contêm demonstrações de revolta: malícia e irreverência das fábulas, proibição da injustiça, o que convida e nos leva à união dos mais fracos e estimula à ação comum que transforma. 

Os contos populares, principalmente os fantásticos, reúnem, materializam e traduzem todo o mundo de desejos do ser humano. Exemplo disso é o desejo de mudar de tamanho, tornar-se invisível, transformar o universo, ser super qualquer coisa, aquilo que a imaginação determinar.

Assim também as lendas cumprem a função de ora explicar a origem das coisas do universo, ora explicar as façanhas dos mitos criados pelas diferentes sociedades.

Em matéria de narrativas populares, acredito que o Brasil seja imbatível, tal é a quantidade de histórias contadas nesse imenso território. Histórias reais, fantásticas ou mentirosas; universais, nacionais ou regionais, estão presentes no dia-a-dia do brasileiro. Muitas delas só conhecemos de “ouvir falar”, outras são desconhecidas no meio em que vivemos.

Uma dessas histórias no Estado de Mato Grosso do Sul é a "Lenda do Mar de Xaraés", referente à região do Pantanal. Os habitantes desse lugar são pessoas simples e guardam em suas memórias histórias que seus antepassados lhes contaram. No Pantanal é muito comum ouvir falar de como se formou essa parte do continente sul-americano, considerando que ali existia, há centenas de anos, o mar denominado Xaraés, pois hoje são encontrados fósseis marinhos, conchas e baías de água salgada.

É certo que estudos indicam que há milhões de anos essa região foi mar, mas é certo, também, que os desbravadores espanhóis criaram uma expectativa sobre o novo território, fazendo crer que a área mais alagada do Pantanal fosse uma enorme lagoa – dos Xarayes, tendo recebido o nome da tribo indígena que habitava aquela região, quando de sua chegada ao local no séc. XVI. E mais, descreviam a paisagem comparando-a com o paraíso, tornando-a um lugar de sonho, mítico, quase inalcançável pelos simples mortais, exceto pelos poucos conquistadores, os bravos e fortes. 

Xarayes torna-se, no início do século XVI, uma das muitas portas de entrada que conduz ao caminho das lendárias Amazonas, mulheres guerreiras e ao tão sonhado El Dorado.

Um dos enunciadores do paraíso foi Alvar Núñez, conhecido como Cabeza de Vaca, navegador espanhol que chegou à região do Prata em 1541.

Mesmo tendo os portugueses, mais tarde, avançado os limites das terras em disputa entre Portugal e Espanha, afastado os espanhóis, destruído reduções jesuíticas e nomeado o lugar de Pantanal, como conhecemos hoje, a lenda do grande mar permaneceu até os dias de hoje.


Imagens do Natal na era da Globalização




IMAGENS DO NATAL NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO
Marlei Sigrist

RESUMO: 
A festa é uma prática cultural da sociedade agrícola, dentre elas o Natal foi incorporado com o surgimento do cristianismo. Com o advento da sociedade industrial, essa festa foi esmaecendo sua dimensão religiosa, chegando à sociedade da informação com um grande centro irradiador dos signos natalinos, que é Nova York.



A festa é uma prática cultural e constitui uma remota manifestação da vida humana, que os estudiosos da cultura popular situam no alvorecer da sociedade agrícola. Sua motivação original é de natureza mágica. Destina-se a agradecer e/ou suplicar à natureza proteção para as plantações e para a vida. Por isso está associada ao calendário da agricultura. Com o advento do cristianismo, a festa adquiriu feição comemorativa, vinculando-se ao culto divino.

No Brasil, as festas populares foram introduzidas pelos jesuítas, representando o transplante de tradições rurais européias, porém foram pouco a pouco sintonizando-se com as nosso clima e geografia. Dentre essas festas, tem muita importância a do Natal.

Até o séc. XIX, essa festa seguia os parâmetros da sociedade agrícola, cuja motivação principal era a religiosidade.  Uma festa consagrada à família, ceia farta e fogueira no meio da aldeia. Festa da intimidade, dos presentes no Natal, com retribuição no dia de Reis, dos presépios, da roupa nova, das danças de roda, com a “Missa do Galo”. Os símbolos natalinos dessa sociedade, parecem ter sido o Menino Jesus e os Reis Magos.

O advento da sociedade industrial foi esmaecendo a dimensão religiosa da festa. Em meados do séc. XX, quando já se denotava a hegemonia da sociedade industrial, a mesma festa revestia-se de novos símbolos como  São Nicolau, árvore de Natal e Papai Noel.

Na sociedade da informação a dimensão religiosa tem sido revalorizada, potencializando o seu impacto pelo poder de difusão que possuem os meios massivos de comunicação no conjunto do território nacional. A televisão evoca a liturgia da Igreja Católica, introduzindo no sermão mensagens ligadas às etnias, às classes desfavorecidas e tantas outras. Essas mesmas tendências ficaram refletidas, em anos anteriores, nas reportagens sobre iniciativas de lojistas, confiando até à Joãozinho Trinta a decoração de redes de shopping centers que, na época, mencionou a origem italiana do presépio, lembrando também a arte abrasileiradora do decorador que construíra diferentes matrizes raciais do Menino Jesus. Por outro lado, tendo assumido dimensão coletiva (por causa do clima, a festa foi para as ruas), o Natal brasileiro, nunca perdeu a sua identidade como instante de fortalecimento dos laços familiares. A ceia familiar tem sido preservada e o espírito de solidariedade permanece presente.

Pode-se observar que a agenda televisiva tem contribuído para seduzir grande parte da população brasileira. Os temas natalinos estão presentes nos diálogos das personagens de novela, nos capítulos que antecedem a data da festa. Na programação, de modo geral, as poucas referências à cultura brasileira estão contidas em shows musicais, mesmo assim descolados do espírito natalino. Canais transnacionalizados, transmitem signos  da nossa cultura no circuito da globalização e, ao mesmo tempo, recebem símbolos mundiais, refletindo uma sociedade multicultural, integrada ao quadro da globalização em ascenção. 

Mas essa identidade global, que caracteriza os signos do Natal na sociedade da informação, tem um centro irradiador, que é Nova York, substituindo Paris na sedução que exerceu sobre a cultura brasileira no século XIX. N.Y. possui um ingrediente que sempre fascinou os brasileiros: a neve. Por isso, além de representá-la artificialmente nas decorações dos ambientes natalinos, uma parcela dos brasileiros, em particular do eixo Rio-S.P., resgata a “nostalgia da neve”, usufruindo das festas de fim de ano na meca da cultura globalizada. Os símbolos do Natal ainda são Papai Noel e a Árvore de Natal, mas começam a ser vampirizados pela simbologia da Disneyland e da Internet. Esta última, somada à televisão, transformam-se na grande praça virtual, na qual as pessoas comemoram seu Natal de maneira coletiva.

Estas reflexões são parte de estudos de um grupo de pesquisadores da Comunicação, liderado pelo Dr. José Marques de Melo. Particularmente, em Campo Grande e Dourados, cidades de Mato Grosso do Sul escolhidas para a pesquisa regional, o conjunto das matérias veiculadas pelos meios de comunicação e por nós analisadas reflete, em sua maioria, a exploração consumista das imagens natalinas. Evidencia-se, não só nessa região, mas em todo o Brasil, que as práticas da sociedade capitalista tratam a festa de Natal menos como um ritual de consagração e, muito mais, como prática mercantilista.


A cultura tradicional no mundo globalizado




A Cultura Tradicional no Mundo Globalizado
Marlei Sigrist

Resumo: A cultura popular, fonte de inspiração para produtores culturais, enfrenta uma nova ordem mundial – o da globalização e sua reorganização já é bastante clara, principalmente quando estimulada pelos meios de comunicação e pelas mudanças econômicas e políticas.


A cultura popular, enquanto temática, apresenta-se como fonte rica e inesgotável para poetas, escritores, cineastas, artistas de modo geral produzirem suas obras, que de uma forma ou de outra contribuem para a composição da identidade nacional. As festas populares, o carnaval, os diversos ritmos, a capoeira, o frevo, o samba e alguns folguedos como: bumba-meu-boi, cavalhada, pastoril, dança, bem como as narrativas que contam façanhas de personagens, expõem lendas e outras histórias são alguns exemplos. Com isso, a cultura popular se projeta nos campos erudito e massivo.

Mas não é por isso que vamos sair por aí copiando todas as manifestações culturais para dizermos que “preservamos nossas tradições”. Agradou-me a ideia de concordar com Ariano Suassuna quando, de uma entrevista, afirmou que “o único verdadeiramente autorizado a criar arte popular brasileira é o povo brasileiro” e, “qualquer um de nós (da cultura oficial) que tentasse fazer uma poesia popular, estaria fazendo uma falsificação”.

Como sabemos, atualmente, há o predomínio do consumo da cultura de massa e é inegável que a mídia marca presença no novo milênio, “temperando” os acontecimentos e as mudanças que contribuem para o desenvolvimento em diversos campos: político, econômico, científico e cultural, só para citar alguns.
Nessa nova ordem mundial, gerada pela globalização, a cultura popular sobrevive à margem da cultura massiva, sendo que muitas manifestações acabam por desaparecer e outras por diluírem-se, tornarem-se, também, massificadas, apenas um produto a mais no mercado.

No Brasil, podemos apontar a diluição das especificidades locais ou étnicas/tribais no contexto da globalização, se, por exemplo, olharmos para a produção artesanal indígena de Mato Grosso do Sul. Poderemos perceber diferenças marcantes nas formas, nos desenhos e no material que os identificam enquanto etnias, porém expostas nas Casas do Artesão, ao lado de outros tantos artesanatos produzidos por não-índios e sem explicação na sua exibição, geram a desinformação ao público, principalmente ao turista. O mesmo se dá nos mercados nordestinos, pontos de venda de artesanatos, nos quais estão expostas peças variadas de diferentes comunidades, sendo todas rotuladas de artesanato nordestino. Como esses, podemos tomar muitos outros exemplos: o samba brasileiro, a culinária, a medicina popular, reorganizados pela indústria cultural.

Por outro lado, é correto pensar que a promoção das culturas tradicionais só adquire sentido e eficácia, na medida que vincula as tradições às novas condições de internacionalização, de mercado, de tecnologias.

Ao consultar a bibliografia que debate a globalização, encontramos relatos que constatam o fortalecimento das diferenças culturais e que o viés da comunicação é que nos aponta tanto o avanço da globalização, como a redefinição das culturas ou identidades regionais/locais. As recentes pesquisas na área de Comunicação mostram que essas culturas estão se fortalecendo a cada dia, até para manterem suas especificidades destacadas e/ou valorizadas.

Sabemos que a cultura de massa apropria-se tanto da cultura erudita, quanto da cultura popular, ajustando-as às suas exigências: atingir o maior número de espectadores, no menor tempo, com a qualidade exigida pela hegemonia e, por isso, as diferenças continuam enquanto partes ligadas à rede do próprio sistema capitalista. Por isso mesmo os grupos sociais estão se equipando, se aprimorando e se impondo no mercado de consumo dos produtos culturais.

Consequentemente, uma nova trama cultural está se processando e desafia nossa compreensão de cultura, segundo os marcos referenciais que possuíamos até há bem pouco tempo. Também são bem visíveis as novas e diferentes formas de socialização que a sociedade articula para percorrer outros caminhos determinados, principalmente, pela economia de mercado mundial.

Portanto, no contexto de uma sociedade global, falar de cultura tradicional, identidade regional/nacional torna-se imperativo estar atento às questões econômicas, principalmente aos fatores determinantes do mercado, que vão influenciar, direta ou indiretamente, no campo cultural e às questões políticas que determinam, hoje, o modo de ser, de agir, de produzir.

Maria de todos os meses



Rafael

Maria de todos os meses
Marlei Sigrist

Resumo: As festas populares religiosas obedecem a ciclos, mas as festas em homenagem à Maria ocorrem durante todo o ano. Em dezembro, no início do ciclo natalino acontecem as festas de Conceição e de Caacupé.


As festas, de maneira geral, são marcantes na história da civilização humana. Vistas como um aspecto da cultura, elas podem ser interpretadas como uma compensação simbólica das insatisfações econômicas, políticas, religiosas, quando o povo, não importando a que classe pertença, impõe uma ordem de poderes através da organização cerimonial e às vezes demonstra as contradições da sociedade. Desassistido, social e economicamente, o povo encontra nos santos, nos orixás e em outros seres possuidores de poderes, a última saída para a solução dos males que sofre, fazendo deles seus intermediários no diálogo entre a terra e o céu.

Grande parte dessas festas, então, está ligada à religiosidade e, no catolicismo popular, obedecem a diversos ciclos, como o de Maio, do Natal, da Páscoa. O tempo da cultura popular é cíclico, é o tempo sazonal  que, em português, quer dizer estação (derivado de sazão - em latim - sátio - época do ano em que se semeia), marcado pelas águas e pelas secas; tempo lunar, marcado pelas marés, pelo cio dos animais, gestação, criação e abate; tempo do ciclo agrário, da semeadura à colheita, do descanso da terra. O calendário religioso festivo da Igreja, a partir da Idade Média, foi vinculado ao calendário festivo pagão, quando as festas máximas estavam distribuídas nas datas próximas aos solstícios e aos equinócios. A Igreja escolheu as datas comemorativas dos santos, seguindo as mesmas demarcações.

Maria, mãe de Jesus, pertence a todos os ciclos e a todos os tempos e, por isso, todos os meses cultua-se pelo menos uma delas, sob a designação universal de Nossa Senhora. A iconografia de Maria nos mostra uma classificação de acordo com as fases de sua vida, como:

Infância: representações de Maria menina, junto a seus pais;
Imaculada Conceição: imagens de Maria em sua juventude, com cabelos soltos, como o de Aparecida, Conceição, Fátima, Lourdes e outras. Acredito que a nova Nossa Senhora do Pantanal pertença a essa classificação;

Encarnação: representações da encarnação do Verbo, desde a presença do Anjo Gabriel até o nascimento de Jesus, como Amor Divino, Anunciação, Bom Despacho, etc.;

Virgem Mãe: invoca Maria com o Menino e o que distingue umas das outras são os símbolos que ela e o Menino carregam, como Rosário, Carmo, Mercês, Misericórdia e tantas outras;

Paixão: são imagens ligadas ao sofrimento de Maria, durante a paixão e morte de seu Filho, como Dores, Angústias, Piedade, etc.;

Glória: representações ligadas à glorificação de Maria após sua morte e coroação no céu, como Assunção, Anjos, Glória, Graças, Boa Morte, dentre outras.

Os nomes de Maria, no Brasil, superam a casa de um mil e quinhentos e variam de acordo com suas aparições (visões) ou de manifestações de natureza extraordinária marcadas em presença de pessoas, ou ainda, conforme as graças recebidas.

Dentre tantas Marias, o dia 8 de dezembro é dedicado à Nossa Senhora Conceição que, segundo o mestre Câmara Cascudo, foi sincretizada no Candomblé com Iemanjá, a rainha do mar. Com este orixá, também outras Nossas Senhoras foram identificadas, como: do Rosário, do Carmo, da Piedade, dependendo da região. De qualquer maneira, a festa de Nossa Senhora Conceição está inserida no ciclo do Natal, que se estende até seis de janeiro, dia dos Reis Magos.

Na fronteira do Brasil com o Paraguai, comemora-se, nesta mesma data, Nossa Senhora de Caacupé (da foto). Entre os paraguaios, ela tem a mesma força espiritual e veneração que N.S. Aparecida tem entre nós brasileiros. A iconografia das santas, na América Latina (espanhola), de modo geral, traz novos elementos, como as jóias, destinadas ao embelezamento daquelas, como pode ser observado na foto.

A Virgencita de Caacupé, como é chamada,  recebe homenagens durante as missas e rezas, culminando com almoços ou jantares à base de pratos típicos da cozinha  paraguaia e bailes ao ritmo de polca, chamamé, exibição da Galopeira, do Toro Candil e outros. A principal manifestação desta festa acontece entre os membros da Associação da Colônia Paraguaia, em Campo Grande/MS, embora existam cultos particulares, reunindo famílias, e distribuídos por diversos bairros da Capital e cidades do Estado, como em Porto Murtinho, Bela Vista e Ponta Porã.

Dos vocábulos da cultura indígena, caá, que significa erva-mate e cupé, que significa atrás, forma-se a palavra Caacupé, cuja tradução é “atrás da erva- mate”. Conta uma lenda indígena, que um índio caçado por seus patrões, lembrou-se de pedir socorro à Virgencita. Escondendo-se atrás de um pé de erva-mate, ficou a rezar durante todo o tempo da perseguição, até que os patrões desistiram da busca. Acreditando ele ter sido salvo pela Virgem resolveu esculpir uma imagem à semelhança da santa, utilizando-se da madeira da erva-mate. Os fiéis comentam  que a primeira imagem encontrada desta santa é uma escultura feita em madeira de erva-mate. Portanto, diante de uma manifestação de natureza extraordinária, foi criada mais uma das muitas Marias.

Campo Grande Cidade Morena e a Cultura Popular



Campo Grande-MS

CIDADE MORENA E A CULTURA POPULAR
Marlei Sigrist

Resumo: 
Costumes e tradições  ainda circulam nas sociedades do terceiro milênio, transitando entre e antigo e o moderno, renovando-se de maneira dinâmica. Campo Grande/MS se permite misturar sabores, linguagens, crenças, músicas e tantas outras manifestações.


Sabedoria e criatividade são qualidades que não faltam à gente do povo. Não pense que povo é somente o outro. Povo somos nós: eu, você, o vizinho, os parentes, não importando a classe social na qual nos incluímos. 

Como tal, estamos sempre criando coisas novas ou readaptando o que aprendemos com as gerações passadas. Por exemplo, apesar da riqueza oferecida pela Língua Portuguesa, o brasileiro cria constantemente neologismos, como o tão divulgado “imexível”; os  jargões, próprios de diversas categorias profissionais, como dos jogadores de futebol, dos guardadores de carro e outros;  os regionalismos, palavras  ou expressões próprias de uma região, como guri ou vôte, entre nós em Mato Grosso do Sul.

Quando me lembro que meus avós anunciavam que “o castigo vem a cavalo” e, depois, “o castigo vem a galope” e, mais tarde, meus pais diziam “o castigo vem a jato”, hoje posso ouvir que “o castigo vem pela internet”.  As conquistas tecnológicas acontecem tão rapidamente, que os dizeres populares e tantos outros costumes tradicionais também se atualizam.

Não importa se uma palavra, ou um antigo costume caiu em desuso, ou, pelo contrário, eles continuam transitando entre o antigo e o moderno, de maneira articulada, o fato é que a inventiva popular está sempre descobrindo novas maneiras de reorganizar sua maneira de ser, pensar e agir.

A cultura é dinâmica e, no âmbito do popular, isso aparece com muita clareza quando paramos para pensar naqueles exemplos. E aí, entendemos que o Folclore é muito mais do que uma coleção de “coisas antigas”, sem utilidade, que viraram peças de museu. Pelo contrário, se os costumes continuam a existir é porque têm uma função a cumprir e refletem o pensamento de um determinado grupo social, incluindo o significado que este dá às coisas.

Por isso, a Carta Magna do Folclore Brasileiro (criada em 1951 e revista em 1995), conceitua o Folclore como “o conjunto das criações culturais de uma comunidade, baseado nas suas tradições expressas individual ou coletivamente, representativo de sua identidade social”. Tem como características principais a aceitação coletiva, dinamicidade e funcionalidade.

O Folclore abrange todos os campos da vida humana, incluindo suas histórias, advinhas, mitos e lendas, pregões, xingamentos e gestos, festas, danças, músicas, brinquedos, jogos, artes e técnicas populares e tantas outras manifestações.

Olhando para Campo Grande, Capital de Mato Grosso do Sul, não posso negar a existência de uma diversidade cultural que, antes, poderia dar a impressão de um quadro desordenado, mas, pelo contrário, contribui para reforçar a diversidade de expressões que aqui se manifestam. É na diferença que os diversos grupos conhecem o outro e reconhecem a si próprios.

Em Campo Grande tem sobá, chipa, locro, farofa de banana. Toma-se tereré, guaraná ralado, caldo de piranha, sorvete de bocaiúva. Fala-se com sotaque cuiabano, corumbaense, paraguaio e gaúcho chê!!! Dança-se o ritmo da moda, mas o que se gosta mesmo é de um bom chamamé. O Bon-Odori, dos japoneses, está aí, crescendo ano a ano. Festejam-se os santos de devoção: Santo Antônio, São João, São Benedito - da tia Eva, São Miguel - dos Lugo e os Santos Reis - do Anísio. Os búzios, as cartas, as runas, estão sempre orientando a vida das pessoas, através dos pais-de-santo, das cartomantes e, as mazelas individuais, são retiradas pelas benzedeiras, rezadeiras e curandeiros espalhados pela cidade. Os carrinhos de mão continuam sendo construídos para atender determinadas finalidades e, casas folclóricas encontram-se espalhadas na periferia da cidade. No campo da economia, costuma-se comprar “marcando na conta” da caderneta do bolicho do “seu Zé” e, as pessoas fortalecem a folkcomunicação, contando suas histórias e piadas, mas também criam e veiculam o marketing popular dos seus produtos, através da comunicação oral. 

Enfim, à primeira vista, parece tratar-se de uma apresentação desordenada, na qual estão reunidas coisas muito diferentes. Porém, todas elas criadas no imaginário de povos diferentes que, convivendo no mesmo espaço estão, primeiramente, preenchendo uma necessidade do grupo (caso contrário a manifestação já teria desaparecido) e, em segundo lugar, estão contribuindo para a formação de um amálgama de formas, gestos, cores, jeitos e trejeitos, necessários à identificação do povo Campo-grandense.