segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Cabeças de vento? To fora!



CABEÇAS DE VENTO?  TO FORA !
Marlei Sigrist

Resumo:
Noutro dia, reunida com algumas pessoas “entendidas” de cultura regional, precisei expor sobre a culinária pantaneira. Análises daqui e de lá, comentários equivocados e opiniões furadas, contribuíram para um encontro improdutivo. Aí, ...


Noutro dia, reunida com algumas pessoas “entendidas” de cultura regional, precisei expor sobre a culinária pantaneira. Análises daqui e de lá, comentários equivocados e opiniões furadas, contribuíram para um encontro improdutivo.

Investi sessenta dias de consultas às publicações existentes para comparar com as minhas pesquisas de campo dos últimos vinte anos, com as anotações empíricas de trinta e cinco anos de convivência, no sentido pleno de viver com, em contato direto com pessoas que habitam o Pantanal (no meio rural, no meio urbano) e, por último, comparar com dados fornecidos por instituições de pesquisas. De posse desse material, o objetivo de qualquer pesquisador é cruzar todos os dados e extrair a essência, a estrutura principal, observar os pontos comuns. Feito isso, cheguei a cento e trinta e duas receitas selecionadas, representantes da culinária tradicional pantaneira e oitenta e seis delas foram destacadas como as mais importantes.

Toda essa explicação serve para que o leitor entenda as reservas e o controle que se tem num trabalho sério de levantamento de dados, visando à publicação; porque depois que esta for efetivada, não se tem mais o controle sobre os dados, papel aceita qualquer coisa e o sistema virtual também.

Pois bem, voltando ao início da história, as pessoas que se encontravam reunidas estavam ali para validar as receitas. Que bom, pensei eu, assim teremos outras contribuições significativas! Qual não foi a minha decepção, os questionamentos correram por conta dos “achismos”, como por exemplo, o prato chamado de puchero levou uma das figuras ali presentes a dizer que o nome deveria estar errado, pois conhecia o prato cozido e era o que normalmente servia a seus clientes. Achava, ainda, que a culinária pantaneira só existe a partir da chegada dos mineiros em Mato Grosso.

Não vou elencar todas as questões levantadas a partir da experiência individual de cada um. Se houvessem quinhentas pessoas reunidas, cada uma delas teria seu palpite pessoal, acreditando, até, que o seu modo de ver as coisas é o mais acertado; isso acontece, geralmente, com a cultura popular. Estão erradas? Eu diria que não. É como contar uma história de saci, cada um tem a sua, mas há que se considerar que existe um ponto em comum a todas elas. É isso que torna consistente a tradição de um povo. E confiável.

Mais uma vez, voltando ao centro da discussão, a minha interlocutora desconhecia o desenrolar da história do Pantanal; não sabia que os espanhóis foram os primeiros conquistadores a se estabelecerem naquela área; que por dois séculos eles transitaram por ali e deixaram suas marcas culturais, junto aos indígenas, às missões. Também não imaginava que, durante a navegação da Bacia do Prata, os países platinos trouxeram suas culturas e com elas a comida, o traje, o linguajar e, com certeza, o famoso puchero, tão apreciado na Argentina, mas que foi adaptado ao local. Portanto, o cozido, trazido de Portugal, ficou lá por Minas, Rio, São Paulo, enfim, lugares desbravados, desde a origem, por portugueses.

E, quando outra interlocutora confessou que achava nossa comida pobre (visualmente sem atrativo), principalmente pensando nas grandes produções editoriais, então, não havia mais o que se discutir ou tentar chegar a um consenso. Percebi, naquele momento, que ela havia perdido (ou nunca teve) a sensibilidade, tão presente  na obra de Manoel de Barros, que traduz a beleza do caramujo e outras “coisas miúdas” do Pantanal, que estão além da compreensão das pessoas insensíveis.

Os estudos sobre grupos sociais mostram que toda e qualquer expressão (a comida é uma delas) deve estar em acordo com o contexto onde se manifesta e que cada formulação pressupõe tempo e lugar adequados. É a contextualização da manifestação (no caso – a comida), que irá traduzir o seu valor de uso e estético.

A prerrogativa, das ciências humanas e sociais, de que o olhar do cientista deve estar destituído de todo e qualquer preconceito, em relação ao seu objeto de análise, se cumpre a partir da tomada de uma postura ética, honesta, em relação ao seu trabalho. O estudo da cultura não se ocupa da comida idealizada, perfeita, mas da comida criada pelas necessidades das pessoas do lugar, possuindo uma estética própria, um paladar formado a partir das relações estabelecidas e instituídas socialmente no local e com sua geografia. 

As manifestações populares (entre elas a comida) têm sido objeto de análise das Ciências Humanas. Se o resultado desses trabalhos não chega ao conhecimento do público (e aí ele se apóia nos “achismos”), é porque a política de divulgação das ciências no Brasil é muito deficiente, os recursos nunca chegam para atender esses fins. O resultado é um público mal informado. 
Às vezes, têm-se que lutar “contra a maré”, mas diante de “cabeças de vento, tô fora!!!”
 

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