segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Festa Popular



Cena de Carnaval, de Jean Batiste Debret


FESTA POPULAR

Marlei Sigrist

(Texto que compõe parte do I Capítulo da Dissertação de Mestrado: 
Festa - lugar de educação:  o Divino na Pontinha do Cocho, da mesma autora)

A festa é uma particularidade exclusiva do ser humano. “O homem é homo festivus e homo phantasia.” A frase é de COX, que acredita não haver “...outra criatura conhecida nossa que reviva as lendas de seus antepassados, sopre para apagar as velas num bolo de aniversário, ou se arrume para aparentar que é diferente do que realmente é.” COX (1974:17) 

As festas, de maneira geral, são marcantes na história da civilização humana. Desconsiderando as explicações simples das necessidades biológica e material que o ser humano tem para a sua existência, as festas, por si só, sempre tiveram um conteúdo essencial a ser trabalhado, exprimindo uma concepção de mundo da sociedade que festeja.

Vistas como um aspecto da cultura, as festas podem ser interpretadas como uma compensação simbólica das insatisfações econômicas, políticas, religiosas, quando o povo (não importando a que classe pertença) impõe uma ordem de poderes através da organização cerimonial e às vezes demonstra as contradições da sociedade.

Vários conceitos de festa têm sido elaborados em diferentes tempos e diferentes lugares. Encontram-se definições voltadas à alegria e fantasia, à cultura (maneira de ser do homem), apenas para apontar os enfoques mais veiculados no meio acadêmico.

A festa, enquanto acontecimento social, engloba essas dimensões, pois ela revigora as relações sociais, apresenta também um desregramento (em diferentes escalas) que se opõe à ordem não só para descarga psicológica, como para libertação, recreação e recriação do mundo.
A essência da festa, que envolve essas considerações e, leva em conta as variedades das sociedades e as formas que as revestem, foi expressa, na opinião de SANCHIS(1983:31), por R.Caillois.


A festa define-se pela “efervescência”, a explosão intermitente, o frenesim exaltante, o sopro poderoso de efervescência comum, a concentração da sociedade, a febre dos instantes culminantes (...)  O excesso faz mais que acompanhá-la de maneira constante. Não é um simples epifenômeno  de agitação que ela desenvolve. Ele é necessário ao sucesso das cerimônias celebradas, participa na sua santa virtude e contribui como ela para renovar a natureza e a sociedade (...) A festa é o caos reeencontrado e novamente ordenado.      
  

De certa forma a vida do ser humano se movimenta em torno da festa, girando no sentido da celebração. Todos os dias os indivíduos labutam para conseguir as coisas que lhes dão sentido à vida (trabalho, alimento, amor, saúde, casa, liberdade, brincadeira) e que merecem ser festejadas junto aos que lhes são queridos. 

MADURO (1994), ao propor reflexões latino-americanas  sobre a crise e o conhecimento em sua obra Mapas para a festa, observa que os transtornos da vida cotidiana no mundo moderno não têm dado espaço para o homem usufruir das coisas que lhes são “caras”, dando lugar ao medo, ao pânico, às insatisfações. As ocasiões para festejar tornam-se mais difíceis. É nos momentos de dificuldades que os seres humanos tentam soluções,  transformações. 


...se a vida humana é - entre outras coisas - uma busca, constante de motivos para a festa, e se os obstáculos dolorosos à vida estão entre os principais estímulos do esforço humano para pensar, conhecer, compreender e transformar a realidade circundante, então poderíamos imaginar o conhecimento humano como uma tentativa de elaborar/esboçar mapas para a festa, uma espécie de roteiros para tentar achar e abrir caminhos que nos levem de volta à vida feliz, a uma vida que mereça e facilite ser freqüentemente festejada com alegria, prazer  e gosto MADURO (1994:13).


O autor propõe a ideia, segundo a qual “todo conhecimento é um esforço de reconstrução da experiência de ordenação de nossa experiência (...) para nos orientar na procura da vida boa.” MADURO (1994:31)

A festa é entendida por RIBEIRO Jr. (1982:131) como um ritual no qual os princípios pedagógicos, principalmente na interiorização de valores e expressão do ethos de cada povo, estão presentes. Aponta três níveis nos quais a dimensão pedagógica se realizaria: uma pedagogia espontânea (na própria ludicidade), uma pedagogia social  (reproduzir a ordem ou criar outras)  e uma pedagogia política explícita (resistência-identidade).

Não querendo me prender à concepção de festa como resistência, mas ultrapassá-la para além do campo social-histórico e me prender mais no campo do imaginário social, porque é nele que a cultura é concebida, não posso deixar de entender que a festa é também um lugar de educação, de expressão cultural, de expressão religiosa,  de expressão do imaginário social.  

Enfim, a festa é uma das expressões mais grandiosas da vida humana, quando o homem pode esquecer sua rotina do cotidiano e enaltecer a vida, o viver (ultrapassando o mero sobreviver), o transportar-se para o eterno mítico, para envolver-se num momento de êxtase, de hybris, momento dionisíaco. Por estes motivos, a festa tem condições de explicar o que seja ser/viver, conhecer. 
Uma das maneiras de explicar estas coisas, talvez seja voltando o olhar para as funções que a festa apresenta nos campos: social, econômico, religioso e cultural.

As funções sociais de fenômenos culturais lúdicos e religiosos estudadas por QUEIROZ (1973), BRANDÃO (1978), SANCHIS (1983), entre outros, são analisadas de modo semelhante. Contudo, tomo por base as considerações elaboradas por  SANCHIS (1983:316-335), por me parecerem mais abrangentes e elucidativas. A festa pode apresentar as seguintes funções: 

a) Função econômica - primeiro, evidentemente para os comerciantes locais e ambulantes. Mas também, para as pessoas simples (dependendo da festa)  exercitarem  uma economia de troca, oportunizada pela presença da multidão. Durante o leilão, atitudes de esbanjamento e ostentação podem ocorrer, sem que o interessado estivesse se programado para tal, levando algum tempo para reequilibrar-se por causa do excesso gasto durante a festa. 
No plano familiar, a comunidade usa de suas economias (acumulação do ano inteiro), para renovar seu guarda-roupa especialmente para a festa. 
Em relação à Igreja, a função econômica está presente, porque depois da perda de sua hegemonia  no campo político e, entregue à sua própria sorte durante muito tempo, sem a ajuda do Estado, tendo inclusive seus bens confiscados, ela tentou orientar os fiéis promesseiros a canalizarem suas “pagas de promessa” para o seu campo: missas, oferendas e outros. Com isso, a hostilidade existente entre o clero e as manifestações religiosas ambíguas tornaram-se suavizadas, estendendo-se até o nosso século. 

b) Função de participação - esta é uma função criadora de autonomia (política). Em muitos locais, pequenos povoados, a festa pode ser a única ocasião, durante o ano, para a comunidade experimentar seu auto-domínio, assumir-se: nas decisões, na projeção de sua imagem, na afirmação de valores, nas suas responsabilidades, etc. Muitas vezes a autonomia é cerceada, quando da ingerência de autoridades administrativas. 

c) Função totêmica - esta função de afirmação da própria comunidade, soma-se à de relação e de troca  com outras comunidades. Uma troca, por exemplo, de moda de roupa, de música, de talentos, para alargar a cultura local. Uma cultura própria que, muitas vezes, perde-se na distância do tempo, um tempo mítico,  no qual  a festa faz periodicamente renascer.


O mito é essencialmente um modo pelo qual a sociedade investe de significações o mundo e sua própria vida no mundo - um mundo e uma vida  que, de outro modo, seriam evidentemente desprovidos de sentido CASTORIADIS ( 1987:235).


A relação entre o tempo do mito (o tempo de espera para a chegada da festa) e o tempo da festa foi teorizada por Mircea Eliade  e utilizada por SANCHIS (1983:32): 


Só o “mito do eterno retorno” permite compreender como esta conjunção do desenrolar temporal com o tempo imóvel é regeneradora pela mediação da orgia.  Uma orgia que, aliás, não constitui toda a festa, já que se articula com outros momentos totalmente opostos na aparência: a purificação pelas abluções, jejuns e confissão das faltas, a extinção e o reascender dos fogos, a expulsão dos espíritos maus por vezes sob a forma de um “bode expiatório” o regresso dos antepassados (...) a quem se oferecem banquetes e depois se reconduzem para fora da comunidade, eventualmente, os combates cerimoniais.   


No caso da festa religiosa, o santo desempenha papel análogo ao atribuído ao mito, pois permite recusar o tempo social como um objeto (que se prolonga no tempo) para se fazer presente de modo absolutizado na festa. SANCHIS (1983:325) explica esta afirmação: 


... não pela simples angústia do tempo que passa e emergência fora do tempo que permite conjurá-la, mas pela referência essencial a um objecto da festa, situado fora do grupo e activo na sua relação com este último: o santo, conjugação  com um outro espaço e com um outro tempo, estabilizado (da vida cotidiana) ...


O tempo da cultura popular é cíclico, é o tempo sazonal   (derivado de sazão - em latim - sátio - época do ano em que se semeia), marcado pelas águas e pelas secas; tempo lunar, marcado pelas marés, pelo cio dos animais, gestação, criação e abate; tempo do ciclo agrário, da semeadura à colheita, do descanso da terra. BOSI (1987:10-12). O calendário religioso festivo da Igreja, a partir da Idade Média, foi vinculado ao calendário festivo pagão, quando as festas máximas estavam distribuídas nas datas próximas aos solstícios e aos equinócios. A Igreja escolheu as datas comemorativas dos santos, seguindo as mesmas demarcações. ESPÍRITO SANTO (1988) declara-se impressionado com a repetição do ritual festivo do século XV até os dias de hoje, seguindo o mesmo calendário, mesmos locais, e promovidas pelas aldeias e não por instituições oficiais. O espanto ainda é maior quando verifica


...que o ritual e o culto já datam, pelo menos, de há três milénios ! (...) uma festa ou é da Primavera, ou das colheitas, ou do Inverno. (...) O que dá o tom ou o carácter à festa é tão-só o estado da natureza ou da vegetação. (...) “O Espírito Santo  é pelo tempo em que se colhem os fenos” (...) o Pentecostes é hoje o que era há três mil anos: um ritual pela agricultura (...) Deste modo, o conteúdo simbólico e inconsciente das festas rurais, associadas através do estado da natureza ao calendário da Terra, perpetuam-se, por assim dizer, imutavelmente de geração em geração, ao longo dos séculos ou dos milénios ESPÍRITO SANTO (1988:149 a 151).


Assim, o tempo das estações do ano, épocas de plantio e colheita mantêm uma relação direta com as festas. Se a colheita é farta, deve-se homenagear os protetores da terra, da fertilidade (substituídos pelos santos no cristianismo). 

Se as intempéries da natureza não permitiram boas colheitas (agricultura, pecuária, saúde e outros), é necessário pedir socorro aos mesmos protetores que, em troca, receberão festas em sua homenagem.  Segundo BAKHTIN (1987:8), “as festividades em todas as suas fases históricas ligaram-se a período de crise, de transtorno, na vida da natureza, na sociedade e do homem”.

Os santos, pertencentes ao plano sobrenatural, são invocados durante os ritos, para protegerem, através da eficácia de suas forças, e assim, restabelecer o equilíbrio.

A concepção de um plano sagrado e  um plano profano que se excluem e se supõem foi mencionada por CAILLOIS (1950) ,  que caracteriza o sagrado como efêmero (certos espaços, certos instrumentos de culto, certos seres, certos tempos). 


O sagrado dispõe de plenitude da força, da energia, eficácia do poder. Confere prestígio aos que mediatizam as relações com o profano. Sem a mediação de ritos adequadado, o contato com o sagrado é sempre perigoso. O sagrado e o profano “são ambos necessários ao desenvolvimento da vida: um como meio onde ela se desdobra,  o outro como a fonte inesgotável que a cria, que a mantém, que a renova” BANDEIRA (1988:185).


Sobre essa dicotomia, SANCHIS (1983:124 e 170) esclarece que na Idade Média,  a Igreja já havia tomado a iniciativa de definição do sagrado, embora o povo continuasse a concebê-lo como um ritual que envolvia orações, cantos, danças, erotismo, comida. Mas, no início dos tempos barrocos já havia um movimento das classes superiores urbanas, no sentido de mudança de concepção do sagrado, com o fim de purificá-lo e preservá-lo. Nota-se que é um movimento das elites sociais e não mais da Igreja e esta, se aproveita do momento para legalizar a definição. 


... (no sagrado) opera uma distanciacão, espacial e temporal, entre o que é sagrado e o que não o é (...) a iniciativa da definição virá eventualmente das autoridades civis e das élites sociais, agindo em função da sua própria representação da ordem, do respeito, da civilidade urbana e “moderna” SANCHIS (1983:124).


No entanto, nesse período barroco, Portugal estava às voltas com o desenvolvimento do comércio das terras de além-mar, há pouco conquistadas, e se via constantemente em situações de imprevistos para administrar tudo isso. Por esta razão, os postos administrativos de poder se alternavam entre a nobreza e as camadas nascentes da burguesia. As conseqüências dessas alternâncias  no poder são também as alternâncias de mentalidades opostas que, “pesarão na definição do sagrado e sobre a sua expressão social”. 
SANCHIS (1983:125). E mais ainda, pesará o entendimento de sagrado que Portugal trará para o Brasil, através das missões jesuíticas, e que irá influenciar na representação do sagrado, na religiosidade popular. 

A festa é um todo: nela há dança, música, canto, orações, comércio, comida, briga, comemoração, encontros, namoro, procissão...  E se a festa é um local distante, fora do perímetro urbano, ali também se dorme e se cozinha. A vida das pessoas instala-se provisoriamente neste local. Assim sendo, é difícil separar  o sagrado e o profano da festa, conforme declara SANCHIS (1983:142):


Mesmo para nós, que a necessidade de analisar obriga a adoptar a linguagem da distinção e das autonomias, o perigo de ilusão não é menor (...) projeta-se então nela um quadro conceptual estranho à maneira como a realidade é efectivamente vivida. 


d) Função de comunicação - a circulação de notícias da própria comunidade, bem como do mundo externo à ela, e não veiculada pela mídia, ganham terreno fértil para esse fim. A definição de preços de mercadoria, para venda/troca entre os integrantes de comunidades vizinhas, é bastante comum.  

e) Função de estruturação social - na ocasião da festa evidenciam-se as estruturas vigentes (de comissões, de família, de outros grupos) e observa-se, no conjunto de suas atividades, em que condições atuam, se de reprodução ou de transformação. Durante a festa, cria-se nova hierarquia social - a troca de papéis,  independentemente de classe e de posição ocupada na hierarquia do cotidiano, fornece a liga no decorrer da festa. 


Graças ao princípio da alternância e da rotação, alarga-se e torna-se menos exclusiva a atribuição dos papéis de autoridade (...) A dinâmica utópica da festa, sinal de uma sociedade igualitária e mesmo de fusão (“todas as classes confundidas”), nunca consegue emergir senão imperfeita e desigualmente da pressão permanente da estratificação e dos conflitos sociais ambientes. SANCHIS (1983:319-320).



A solidariedade é fator preponderante no desenrolar da festa, quando os participantes colaboram para a realização da mesma. Enquanto alguns ajudam-se mutuamente na organização, outros contribuem com sua presença, reforçando assim, a expressão de conjunto da comunidade. 

f) Função de expressão e criação cultural - entre os integrantes da comunidade que festeja constata-se a existência de “artista anônimos”, desconhecidos do mundo artístico “oficializado” pela mídia e/ou academias, mas que criam e se expressam dentro de uma estética própria a cada grupo. São tocadores de instrumentos musicais, compositores de modas, corais improvisados, cantadores de desafio, executantes de danças tradicionais, artesãs de decoração floral do altar e da bandeira, decoradores de ambientes, confeiteiros de prendas para leilão e tantos outros que possam existir nas inúmeras festas espalhadas pelo mundo, criando modos novos de viver a vida.

g) Função de integração individual no plano emotivo e afetivo, e de equilíbrio coletivo na pulsão erótica - função observada, principalmente, nas festas populares, que são prestigiadas especialmente pela camada mais jovem  da comunidade, cujo testemunho é a predileção pela dança (principalmente os bailes), entre as atividades festivas.


O cancioneiro da Vaticana diz-nos que as mães desse tempo (Idade Média) iam a São Simão de Vale dos Prados queimar candeias (336), acompanhadas por suas filhas. Mas estas pareciam mais amigas da dança que da oração ”  E os textos episcopais, que citámos alguns, que se escalonam a partir do século XIV são suficientes para reduzir a estreitos limites o âmbito desta observação do bispo que afirmava em 1937 que a dança, em muitos arraiais, só datava de há quarenta anos e que em qualquer caso, as “raparigas sérias”  não dançavam. SANCHIS (1983:322).     



Em diversos casos e em diferentes medidas, esta função persistiu ou caducou por inúmeros motivos, entre os quais, um policiamento austero (ideológico), em especial a austeridade sexual, quis apagar essa maneira de exaltar, às vezes erótica, nos momentos em que aparecem alargados os traços de licenciosidade socialmente consentida, às vezes eventualmente orgíacos, nos momentos marginalizados. Violência de gestos, danças libidinosas, aventuras sentimentais ou transgressões sexuais podem ocorrer durante a festa, afinal a festa é um período transgressor. Jovens de comunidades vizinhas comparecem à festa e as mães “habitualmente contentavam-se em fazer vista grossa - pastoras das suas filhas que, por instinto, não notavam nem o lobo no redil nem o rebanho extraviado.” SANCHIS (1983:173).

Para enriquecerem os momentos de integração individual no plano emotivo e afetivo e, ao mesmo tempo, almejarem uma sensação social e universal, os homens fazem uso do riso, um dos elementos constitutivos da festa, que sintetiza através dele a alegria sentida pelo povo no momento de descontração.

No início do período feudal  (séculos VII,VIII e IX), o riso  popular se fazia presente nos círculos religiosos médios e superiores, porque seu encanto era poderoso e, sendo a cultura popular muito forte na época, era necessário servir-se de seus elementos, para fins de propaganda da cultura oficial religiosa, ainda débil. Havia, portanto, tolerância do riso. 

Com o fortalecimento do poder do clero nos séculos subsequentes, o riso foi abolido das esferas oficiais, do culto religioso e das cerimônias sociais. A seriedade assim é descrita por BAKHTIN (1987:63):


...ascetismo, crença numa sinistra providência, papel dominante desempenhado por categorias como o pecado, a redenção, o sofrimento, e o próprio caráter do regime feudal(...) suas formas de opressão e de extrema intimidação, determinaram esse tom exclusivo, essa seriedade congelada e pétrea (...) o medo, a veneração, a docilidade, etc., constituíam por sua vez os tons e matizes dessa sociedade.


Naquele período espalhava-se a idéia de que o riso, a pilhéria, não provém de Deus e por isso “o cristão deve conservar uma seriedade constante, o arrependimento e a dor em expiação dos seus pecados” BAKHTIN (1987:63).

Para suprir as necessidades que se formavam em torno dessa proibição, a compensação era feita fora da igreja, até pelos padres do baixo clero, legalizando-se assim uma forma alegre e cômica, paralela à forma canônica, oficial*. Isso faz com que existam cultos paralelos, nos quais o riso não mais seja sublimado, pelo contrário, que ele esteja presente no culto não oficial. Nas festas de rua, a intenção básica era a de juntar e igualar, com o propósito de abolir as diferenças, ao contrário das festas da “ordem”. 


Assiste-se  a uma mobilização de todas as formas elaboradas ao longo dos séculos: adeuses ao inverno, ao jejum, ao ano velho, à morte, acolhimento alegre da primavera, dos dias de abundância, de matança das reses, das núpcias, do ano-novo, etc., isto é, todas as imagens da alternância e da renovação, do crescimento e da abundância, que resistiram aos séculos**.


Outro elemento presente nas festas medievais e conservado até os dias de hoje, o banquete, simbolicamente visto como o banquete universal, que hoje podemos chamar de “comida coletiva”, associa-se à ideia de fartura, de abundância material, de crescimento, de renovação, de universalidade - é o regozijo popular.


Hoje, quando oferecemos café às visitas ou damos um almoço de aniversário, prolongamos, de certa forma práticas imemoriais, em que a ingestão de alimentos obtidos com esforço, e irregularmente, trazia uma poderosa carga afetiva, facilmente transformada em manifestações simbólicas. À medida que a civilização assegura a regularidade do abastecimento, esta carga diminui, para manifestar-se quase apenas nas ocasiões importantes da vida. CANDIDO (1971:30)


O banquete das festas, compreendido como a alegria vitoriosa, adquire a função de coroamento, que segundo BAKHTIN (1987:247), equivale à boda (ato de reprodução). Na explicação de ETZEL (1971:88):


O antigo costume de bodos (do latim votum=vodus que se transformou em vodo e, por fim, bodo ) vem possivelmente de todos os tempos, aparentemente dos romanos, mas provavelmente dos banquetes mortuários da remota antigüidade, sabido o culto aos mortos como responsável por grande parte do nosso conhecimento atual da antigüidade. Tais práticas vinham de longe e em Portugal havia “comezainas dadas aos pobres em benefício (inteção) dos mortos”. (...) tais comilanças havia nas igrejas e enterros. No reinado de D.Manoel e da rainha Isabel, no livro cinco, título V das ‘Ordenações do Reino’ ***, eram proibidas  todas as comezainas, conservando apenas as ligadas à festa de Pentecostes, i.é., do Divino Espírito Santo.


Sobre bodos, encontra-se referência na obra de ESPÍRITO SANTO (1988:cap.IV), que buscou subsídios nos estudos de Weber, entre outros e pôde esclarecer a origem dessa prática que sobreviveu aos tempos: 


O comer em comum era costume “cananeu pré-bíblico, talvez de origem persa (...) significava estabelecer uma aliança indelével” (...) a refeição é o próprio acordo, não é a sua celebração; a refeição corresponde à assinatura dos nossos contratos (...) a refeição em comum é designada no Antigo Testamento por (sacrifício de comunhão) e existia em toda e qualquer festa religiosa. ESPÍRITO SANTO (1988:83-4)


O autor explica, ainda, que o “sacrifício de comunhão” é justificado por uma “promessa antiga” para que não aconteça novamente a praga bíblica: fome, peste e guerra sobre os campos. 

Fica claro que, desde a primitividade, o comer era coletivo e, além de religioso, era um acontecimento social. A comida coletiva, preparada em grande caldeirão, permaneceu ligada às festas populares até os dias de hoje e adquiriu conotação de banquete, um elemento necessário a todo regozijo popular.****  


Uma refeição não poderia ser triste. Tristeza e comida são incompatíveis (...) O banquete celebra sempre a vitória, é uma propriedade característica da sua natureza. O triunfo do banquete é universal, é o triunfo da vida sobre e morte. BAKHTIN (1987:247)


As imagens do banquete popular levado às últimas conseqüências estão registradas nas obras de Rabelais, principalmente em Pantagruel, na qual a glutonaria e embriaguez adquirem um tom de comicidade. Sobre esse assunto, BAKHTIN (1987:69) em nota de rodapé, comenta: “...glutonaria e embriaguez recebiam aqui uma significação simbólica ampliada, utópica, de ‘banquete universal’ celebrando o triunfo da abundância material, do crescimento e da renovação.” Imagens como essas permaneceram no mundo simbólico dos diversos povos, cada qual ajustando e atualizando conforme suas necessidades. Elaborações simbólicas foram produzidas ao longo dos séculos para comemorar o ano novo que chega, o casamento, o nascimento, a colheita, o santo, i.é., a alternância, a renovação, a abundância.  A respeito disso BAKHTIN (1987:246) revela:


...as imagens de banquete guardam sempre sua importância maior, seu universalismo, sua ligação essencial com a vida, a morte, a luta, a vitória, o triunfo, o renascimento. Por essa razão, essas imagens continuaram a viver, no seu sentido universalista, em todos os domínios da obra criadora popular (...) continuaram a desenvolver-se, a renovar-se, a enriquecer-se de novos matizes...


Finalmente, pode-se dizer que a festa mergulha na raiz do inconsciente coletivo, e mostra a cultura tecida na rede simbólica do imaginário social.  Ela serve de referência para se enxergar além do imediato: que transformações ocorrem durante os milênios (ou não), indicando as vias por onde a cultura passou.  

*  Observado principalmente na Festa dos Foliões  ou Festa dos Loucos, uma espécie de carnaval na I.M. em que o povo, os padres e os cidadãos mais comportados, se mascaravam e fantasiavam, cantando músicas que satirizavam as leis, os costumes, os poderes, as virtudes e os rituais pomposos da Igreja.   Conforme COX (1974:11) “componentes do baixo clero lambuzavam a cara, estadeavam por aí em trajes reservados a seus superiores e arremedavam os pomposos rituais da Igreja e da Corte. Às vezes escolhia-se um príncipe da bagunça, um rei palhaço, ou um bispo-garoto para  presidir os eventos. Em alguns lugares o bispo-garoto até parodiava a celebração de uma missa. Durante a Festa dos Foliões, não havia costume, nem convenção social que não se expusesse ao ridículo, e até as personalidades mais credenciadas da região não conseguiam subtrair-se à sátira. A Festa dos Foliões não era nunca prestigiada pelas classes privilegiadas, mas antes condenada e criticada sem cessar. Mas a despeito dos esforços de gente de Igreja que se via atingida, e duma condenação formal baixada em 1431, pelo concílio de Basiléia, a Festa dos Foliões sobreviveu até o século dezesseis, quando então, na época da Reforma e Contra-Reforma, foi esmorecendo gradativamente. Suas pálidas sombras se fazem ainda notar nas paródias e folias em vésperas de Todos os Santos (Halloween) e de Ano Bom (New Year’s Eve).”

** A manutenção desse ritual ainda é tão presente entre nós, que pode ser percebido também, na sua forma modificada, através da dança universal, hoje conhecida como Pau-de-fitas, simbolizando a árvore enfeitada e que comemora o ressurgimento da vida, da fertilidade, da felicidade, da primavera.

*** Conforme ETZEL, “as Ordenações do Reino de D. João III, filho de D. Manoel, recompiladas por sua ordem em 1643, e publicada em Lisboa em 1696. Lê-se no livro V,  título V (106): ‘Dos que fazem vigílias em Igrejas, ou vodos fora dellas.- 1o. E defendemos que não fação vodos de comer e de beber nas Igrejas nem fóra dellas posto que digão que o fazem por devoção de alguns Santos, sob pena de que o asi pedir e receber pagar em dobro de cadea tudo o q. receber para quem o accusar. Não tolhemos porem os vodos do Espírito Santo   que se fazem na festa de Pentecostes porque somente estes concedemos e outros alguns não.’” (p.88)    
****  Na cultura oriental, os Kua (signo), surgidos entre 1150-249 a.C., conforme consta em WILHELM, Richard no I-ching, o livro das mutações (usado como oráculo na China), trazem as significações dos fenômenos que acontecem na nossa vida. Assim, entre os inúmeros signos, encontra-se a figura do CALDEIRÃO. Explica WILHELM (1986:18) que ele “serve para oferenda de sacrifício a Deus. Os mais elevados valores terrenos devem ser oferecidos em sacrifício a Deus... A suprema revelação de Deus encontra-se nos profetas e nos santos. Venerá-los é, na verdade, venerar a Deus.” JUNG, que prefacia a mesma obra, analisa a figura do caldeirão e explica tratar-se de um recipiente destinado a ritual que abriga comida preparada, a qual é entendida, de maneira metafórica, pois o seu significado é o de alimento espiritual.  

                                 

Nenhum comentário:

Postar um comentário