segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Cantigas de Ninar Tenebrosas !?!

           


Cantigas de ninar ternas e tenebrosas !?!
Marlei Sigrist (introdução)
Tais Garnier (artigo)


Resumo: A jornalista Tais Garnier expôs a abordagem geral, introdutória da pesquisa de Ana Lúcia Cavani Jorge sobre os acalantos usados pelas mães para embalar seus filhos, falando também sobre a solidão, como uma ponte para o amor adulto. Na seqüência, outros tópicos desvendam o funcionamento do inconsciente, na utilização dos acalantos.



Desde que a internet foi criada, vez em sempre circula nas redes sociais a tão comentada notícia de que as canções de ninar brasileiras são “malvadas” – afirmações de um ilustre desconhecido brasileiro, morando nos Estados Unidos e trabalhando como baby sitter. Há alguns anos, escreveu-me uma leitora, ex-aluna, agora professora  preocupada com a situação, solicitando-me um artigo sobre a questão. Na época, para ela e todo o grupo que formou uma cadeia interminável de “repassadores” (mas nenhum parou para opinar, ou questionar a validade, apenas ela), respondi apressadamente o seguinte:

Acho que esse sujeito aí está sofrendo da síndrome da pouca filosofia e da quase nada de história, porque se ele pesquisasse um pouco (como se deve - e não com achismos), saberia fazer uma leitura dos bastidores da nossa história que marcaram os negros escravos - sofridos sim e medrosos também, porque para eles só restava o tão conhecido "escreveu não leu, pau comeu" e que eram justamente os responsáveis por embalarem as crianças de seus donos nas casas grandes. Seria bom que ele lesse um pouco de Gilberto Freire, de Darcy Ribeiro, antes de fazer os julgamentos inconsistentes. Assim ele poderia contar, lá onde mora atualmente, um pouco da história de seu país, o quanto o colonizador foi opressor com os negros (tanto quanto nos Estados Unidos) Será que as "eguinhas pocotós" e os "arrochas" são melhores hoje? Ou quem sabe as músicas lascivas da Madona??? Talvez do Michel Jackson (que adorava criancinhas)???  

E assim encerrei o assunto, mesmo porque não achei que fosse necessário correr para defender o que muitos estudiosos já constataram (e publicaram). Essas histórias não são de hoje, haja vista que na década de 50, muitos “moralistas” americanos publicaram obras, tentando coibir e controlar as crianças quanto a leituras e audição de certas histórias, por julgarem perniciosas e sedutoras de inocentes.

Mas, revendo as publicações, encontrei um artigo/resenha, escrito pela jornalista Tais Garnier em 1984, e publicado em revista da Coordenadoria de Atividades Culturais da Universidade de São Paulo, que julgo ser super atual para a discussão do assunto. Trata-se de um texto do tipo resenha e entrevista com a pesquisadora Ana Lúcia Cavani Jorge, sobre sua dissertação de mestrado na área de psicologia (outro ponto vista interessante, além do histórico, para reflexão do tema). Por isso, julgo oportuna a transcrição total desse artigo.


Susto e ternura nas cantigas de ninar: a vida que vence a morte, a solidão que faz crescer, a separação necessária. Esse e outros significados, profundos e poéticos, estão presentes quando a mãe embala o filho com uma velha cantiga.
Por: Tais Garnier

Nana, nenê / que a cuca vem pega / papai ta na roça / e mamãe no cafezá

Por que os acalantos, feitos para acalmar e fazer dormir, cantados com tanta ternura, contêm sempre um elemento aterrorizador?

Ana Lúcia Cavani Jorge faz esta pergunta numa tarde de 1977, no campus da Universidade de São Paulo/USP, enquanto procura temas para sua dissertação de Mestrado em Psicologia. Dali, até a conclusão de seu trabalho, que acaba versando exatamente sobre os acalantos, Ana percorre um longo caminho à procura de uma resposta para a pergunta.

Nessa procura ela decidiu, em primeiro lugar, verificar se realmente os acalantos sempre continham personagens terríficos. Através de entrevistas e coletâneas folclóricas, confirmou a presença do terrível na maioria deles. Porém, em seu levantamento observou que muitas pessoas nunca haviam notado o elemento aterrorizante nas canções que elas próprias cantavam. O fato era causa de estranheza. “São justamente as mães mais carinhosas que acalantam os filhos”, uma delas comentou.

Ana Lúcia observa ainda que ao falar sobre o acalanto (este ato de fazer dormir uma criança embalando-a no colo e entoando uma canção de ninar), algumas pessoas tomam uma expressão diferente – iluminam-se – como lembrando de algo muito bom. Outras, principalmente mulheres muito velhas, esquivam-se do assunto. 'O que a gente cantava?' elas diziam. 'Ah a gente canta qualquer coisa'. 'Mas que qualquer coisa?' Lúcia insistia. 'Ah, essas musiquinhas de criança'.

Segundo Ana, até estudiosos e pesquisadores ignoram solenemente o assunto, como prova a escassa literatura a respeito. E ela pergunta: 'será que o acalanto é algo tão banal que não merece ser estudado? Ou, ao contrário, exatamente por mexer com conteúdos emocionais muito profundos, amedronta as pessoas?'

Exceção à regra, Ana Lúcia dedicou sete anos a seu estudo, analisando 190 acalantos de várias partes do Brasil, América Latina, Espanha, Portugal, além de textos e depoimentos sobre o tema. Ela situa o acalanto em suas várias dimensões – melodia, texto, ritmo, contexto (local, hora, contato físico) – elementos pelos quais Ana delineia uma função para o acalanto, até então nunca mencionada nos textos a que teve acesso e que vai muito além do fazer dormir. Autora da primeira dissertação sobre o assunto de que se tem conhecimento, delicado mesmo, uma vez que lida com o profundo do ser humano.

Solidão: ponte para o amor adulto

O acalanto tem como função mais óbvia o fazer dormir, acalmando através de uma espécie de encantamento, o bebê inquieto. O que é esta inquietude que não deixa o nenê dormir, mesmo tendo sono? Por que o medo?

Conforme explica Ana em sua dissertação, a hora de dormir é o momento de se separar da mãe. Experiência dolorosa e temida, pois, para a criança, a mãe é seu universo. Sua existência não só física, mas também psicológica, depende daquela. Ela não quer perder aquele mundo quente de carinho, proteção e aconchego. A separação, na hora de dormir, é o primeiro protótipo da hora da morte. E a mãe? Ela também sente prazer em ser tudo para o seu filho. E talvez ambos gostassem de perpetuar essa doce relação de completude. 

Porém, continua Ana, a mãe precisa atender a outras solicitações, como trabalhar fora, por exemplo. Até o trabalho doméstico – cuidar das próprias necessidades do filho, como de sua roupa e comida – a distância dele. Mas o fator decisivo na imposição de um limite à relação mãe/filho é a existência de um Outro – aquele que é representado pela figura do pai. Com a chegada do Outro, a mãe deixa de ser mãe para ser, mais que isto, mulher.

Esta, ao mesmo tempo em que é autora do corte na relação de completude com seu filho, sofre com isto. Sua posição é ambígua e conflitante. Forças contrárias estão em luta em seu interior. Para a criança, inicialmente a separação é assustadora: existindo como reflexo da mãe e, portanto, baseando sua existência nesta, a separação reveste-se de um aspecto ameaçador. Se só sou com minha mãe, sem ela há o risco de desintegrar-me. Claro que isto não é pensado racionalmente, mas vivido de forma inconsciente. 

Porém, afirma Ana, este limite à união completa entre mãe e filho, aparentemente impiedoso, na verdade é sadio e libertador para ambas as partes. O filho terá que enfrentar sua solidão, pois ela é condição básica para que este se torne um sujeito, um ser independente. E só através dessa subjetivação (tornar-se sujeito) poderá mais tarde reviver o amor adulto.

Através de suas pesquisas, Ana Lúcia observou que os acalantos reproduzem justamente a relação mãe-filho aqui descrita, só que de forma simbólica e poética. Deste modo, falam do amor da mãe pelo filho como desdobramento do narcisismo materno:

Dorme engraçadinho / queridinho da mamãe / que ele é bonitinho / o filhinho da mamãe.

Falam também do medo que a mãe sente do perigo que vem de fora, e quer levar-lhe o filho: a cuca, o papão, o tutu-marambáia, o bicho-tatu. E referem-se à exorcização do perigo:

Vai-te coca, vai-te-coca / sai de cima do telhado / deixa o menino dormir / o seu soninho sossegado / Ô, ôô, ôô ...

A face que corta dá talho sem dor
As canções de ninar falam, ainda, da aceitação da solidão/separação, que é aterradora e necessária – caminho para a subjetivação, o desenvolvimento. O filho está sozinho e com frio – sem o quente dos pais – mas a solidão (a faca que corta) 'dá talho sem dor' :

Estava Maria / na beira do rio / lavando os paninhos / do seu bento fio (filho).
Maria lavava / São José estendia / chorava o menino / do frio que fazia.
Chora, meu menino / chora, meu amô / que a faca que corta / dá golpe sem dô.

Assim, de acordo com a pesquisadora, os acalantos ajudam mãe e filho a enfrentarem as dificuldades de sua relação, preparando a ambos para a vivência do processo de desenvolvimento, de subjetivação que começa a ocorrer na infância e se estende por toda a vida. Processo que não se dá de maneira racional, mas ao nível do inconsciente, profundo, e por isso mesmo muito mais efetivo.

Os acalantos, refletindo a posição paradoxal da mãe em relação ao filho – a tendência à união versus a necessidade de separação -, elaboram, ao nível simbólico, os conteúdos emocionais que estão em jogo. Dessa maneira, a cuca e todos os seus correspondentes (o tutu, o tutu-marambaia, o bicho-papão, o murucutu, o carrapato, o boto), são personagens indefinidos que abrigam a ambiguidade da relação a que se referem: vêm de fora, são terríveis, vão tirar o filho de sua mãe, 'vem pegá'. Mas, também, são representantes da liberdade de escolha de um novo objeto de amor fora do par mãe-filho. São o símbolo do amor adulto, equivalente, nesse sentido, ao príncipe encantado das estórias de fada, mas visto do ângulo da criança. Isto é, primitivizado, como o sapo cururu ou o boto da canção de projeção do folclore:

Tajapanema chorou no terreiro / Tajapanema chorou no terreiro / e a virgem morena sumiu no costeiro. / Foi boto sinhá, foi boto sinhô. Que veio tentá e a moça levo / No tar dançará aquele douto /  foi boto sinhá, foi boto  sinhô.
Tapajanema se pôs a chorar / quem tem filha moça é bom vigia / O boto não dorme no fundo do rio / seu dom é enorme, quem quer que o viu / que diga, que informe se lhe resistiu./ O boto não dorme no fundo do rio. (da canção popular, com letra: Antonio Tavernard e música: Waldemar Henrique, título: Foi boto, sinhá).

O não também pode ser generoso
A respeito de possíveis indicações de conduta para as mães, a psicóloga enfatiza, em primeiro lugar, a necessidade de que estas tenham em suas vidas outras coisas importantes além do filho. A existência de outros interesses, como um emprego, uma arte e principalmente um amor adulto, é que vai tornar possível que ela determine o limite na relação com a criança.

Ana reforça ainda, a noção da função paradoxal da mãe – função de sim e de não. Sim é o prazer, a completude, a doação, a proteção e carinho, função tão importante quanto a do não, que impõe o corte. 'É importante que a mãe pegue a criança no colo', diz Ana, e 'não tenha medo de sentir prazer ao amamentar e ter seu corpo sugado. Este prazer faz parte da relação'. Além disso, 'é bom que ela se ocupe diretamente do filho, em qualquer idade, de preferência antes de dormir, mas também em outras horas. Que possam conversar e que o pai participe disso'.

Por outro lado, lembra ela 'é preciso estar apoiada no amor de um outro para afastar-se de maneira generosa na hora certa. Amar um outro é respeitá-lo, falar em nome dele. Em nome de uma outra Lei. Assim, este não deixa de ser perverso para tornar-se um não de limite, que remete a criança mais além da Lei do pai e da mãe, à Lei social'. E, continua, 'deve ainda aceitar, às vezes, a ajuda de avós, vizinhas ou empregadas com quem tenha um bom relacionamento'.

Ana faz menção a livros de puericultura franceses e americanos da década de 50, que consideram o acalanto prejudicial. Refere-se, ainda, a mães que não acalantam por convicções ideológicas, vendo em tal ato uma tradição burguesa rançosa. Outras o evitam por temerem deixar a criança mal-acostumada ou por suporem que poderia se assustar com o elemento terrível das canções.

Em respostas a tantas prevenções, Ana reafirma a importância do acalanto para a elaboração dos conflitos inerentes ao desenvolvimento e acrescenta que não se deve temer que este seja causa de susto e, assim, 'cantar o que se tem vontade, não tendo preconceito contra cantigas tradicionais, pois foram selecionadas pela memória de seguidas gerações, como aquelas que mais se adequaram à função materna paradoxal de completude e corte'. E termina: 'a intuição é importante na escolha do texto, no jeito de cantar, no ritmo... no ser mãe, enfim'.




2 comentários:

  1. Olá, Marlei!
    Sou a filha primogênita da Dra Ana Lúcia Cavani.
    Encontrei essa sua publicação por acaso mas agradeço imensamente essa publicação de parte da história da mamãe. Esse mestrado ela escreveu enquanto estava grávida de mim e após meu nascimento então tanto sua tese de mestrado quanto seu primeiro livro falam muito sobre a nossa relação.
    Obrigada por essas memórias ❤

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  2. Olá, Marlei!
    Sou a filha primogênita da Dra Ana Lúcia Cavani.
    Encontrei essa sua publicação por acaso mas agradeço imensamente essa publicação de parte da história da mamãe. Esse mestrado ela escreveu enquanto estava grávida de mim e após meu nascimento então tanto sua tese de mestrado quanto seu primeiro livro falam muito sobre a nossa relação.
    Obrigada por essas memórias ❤

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