terça-feira, 14 de janeiro de 2020



DOCUMENTO ABERTO ÀS INSTITUIÇÕES, IMPRENSA E SOCIEDADE

Prezados/as  senhores/as,

A COMISSÃO SUL-MATO-GROSSENSE DE FOLCLORE (CSMFL), entidade não governamental, CNPJ  11.425.900/0001-05 - Campo Grande/MS, vem a público esclarecer sobre a tradição do “El Toro Candil” que ocorre em municípios de Mato Grosso do Sul, na fronteira com o Paraguai, com base:

- na Carta Magna do Folclore Brasileiro (1995), em cujas orientações recomenda a atuação das Comissões Estaduais junto às autoridades religiosas, políticas, policiais e educacionais no sentido do reconhecimento, prestígio e respeito às várias formas populares de expressão cultural; 

- no artigo 14 da Convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, realizada pela UNESCO em 2003, Paris, cujo tópico b recomenda manter o público informado das ameaças que pesam sobre o patrimônio imaterial.

Assim como a população do Estado de MS, a Comissão de Folclore tem acompanhado pela mídia a representação cultural de dois Bois-Bumbás, criada recentemente em Porto Murtinho/MS, denominada de Toro Candil por seus criadores (produtores culturais) e até de Boi Candil (por emissora de televisão local).

Antes, porém, é necessário fazer algumas considerações e conceituações importantes à compreensão do assunto em pauta.

As manifestações populares tradicionais podem ser entendidas como folclóricas, porque são representativas da tradição; aprendidas junto à comunidade, por imitação, e passadas de geração a geração, em transmissão empírica, distanciada das formas eruditas de ensino, como: escolas, academias, instituições em geral. Elas se desenvolvem com base no contexto das práticas culturais locais e, por isso, refletem esse contexto na linha melódica, nos versos cantados, na indumentária, na estética, nos movimentos, na temática, enfim, no sentido que se dá a elas. São impregnadas de signos e significados importantes para a comunidade que as pratica. Tanto assim que, nos casos de danças e folguedos seus movimentos, além de se ligarem ao ritmo da música, também se ligam aos movimentos do cotidiano no trabalho e/ou na fé e/ou no lazer. Saber sobre a origem dessas danças e sua história depende da memória dos sujeitos mais velhos da  comunidade, que  apenas viam ou as praticavam. As maneiras de ser e estar no mundo de cada grupo social fornecem elementos para a construção da identidade local, que é constituída principalmente pelas: visualidades, sonoridades, gestualidades, linguagens, crenças que narram e modelam uma cultura própria e compõem o imaginário de um país, uma região, uma cidade. A fonte do folclore são os grupos de origem (autênticos), ou seja, os grupos criam suas manifestações, que são aceitas coletivamente e passam a reproduzi-las pelas sucessivas gerações. Qualquer bom portador da tradição popular pode se expressar da seguinte forma: “lembrar é um exercício que deve ser feito diariamente. Lembrar como meus antepassados faziam para que eu possa aparar as arestas, ajustar os ponteiros ao meu tempo e projetar o futuro”. É assim que se mantém a tradição. O resultado desse exercício coletivo é que pode ser apontado como tradição do lugar.

A influência paraguaia na cultura sul-mato-grossense é forte e evidenciada, principalmente, pelos ritmos da polca paraguaia, da guarânia e do chamamé. A brincadeira do el Toro Candil, acompanhada da disputa pela pelota tatá (bola de fogo) são referências dessa fronteira, principalmente durante os festejos da Virgem de Caacupé. Brincar o Toro Candil e dançar com os mascaritas, à primeira vista pensa-se na similaridade dos bumbás do norte e nordeste brasileiros, porém há uma diferença marcante que é brincar com a carcaça do boi de chifres acesos, uma lembrança cômica das touradas espanholas e das corridas de touros, muito presentes, ainda, em várias cidades da Espanha e do México. 

Corrida de Touros Espanha 
Pesquisas realizadas nos anos 90 por Sigrist (2008) e revisitadas por Banducci (2003), registraram a manifestação do el Toro Candil, em que o grupo participante era liderado por Xisto Salvador Antunes, que havia herdado de sua mãe a referida tradição e promessa. Após seu falecimento, tem hoje sua irmã Dionísia responsável pela continuidade da tradição, quando na ocasião dos festejos da Virgem de Caacupé os brincantes são convidados por meio da comunicação oral e também pela rádio local a participarem do evento. Como acontece em muitos locais do Brasil, os grupos populares pouco ou nada recebem de incentivo (cultural e financeiro) do poder público local, muitas vezes justificado por infinitas razões, que não cabe discutir no momento. Em Porto Murtinho não é diferente, os brincantes continuam no anonimato.

 
Mascaritas brincam com a pelota tatá (bola de fogo) - Porto Murtinho-MS








Brincando com o Toro Candil - Porto Murtinho-MS















No entanto, vivemos num período de espetacularização multimídia, que colabora para a descaracterização regional em algumas situações, como tem ocorrido com a representação dançada de dois bois naquele município, cópias do Bumbá de Parintins, montadas por carnavalescos, segundo populares do local (que tem sido registrado pelas redes de televisão, Internet e imprensa durante festivais e acontecimentos políticos), forjando um possível Toro Candil.                       
                                                                                                                







 Boi copiado, recentemente, em Porto Murtinho-MS
Com os mesmos personagens de Parintins-AM


Nesse momento é oportuno lembrar a frase de um dos grandes mestres do folclore brasileiro, Renato Almeida: “Se não vir do povo ou do primitivo (de origem) coisa alguma é folclore, pois apenas nesse ambiente produz-se folclore” (1957, p.42). 


O folclore está na vivência de tradições oriundas do povo que habita um determinado lugar. O folclore não se inventa aleatoriamente, nem se substitui. Ele é criado pela coletividade, passado pelo crivo de todo o grupo social, aceito por todos e passado para as novas gerações. Para ser válido tem de ser autêntico e de raiz, originado pelo povo da região, que recria os costumes ancestrais, conforme explicado anteriormente.

Bumbá de Parintins - AM
Enquanto o Bumba-meu-boi é um folguedo popular que apresenta aspectos de aculturação portuguesa e africana - e o Boi Bumbá de Parintins é uma variante dessa manifestação, contendo signos e significados próprios do Bumbá e da ilha dos Parintintins (eminentemente indígena na sua origem) -, 

 







Personagens indígenas são o forte do Boi de Parintins-AM

el Toro Candil é uma paródia das corridas de touros (Espanha, México), uma festa noturna em espaço aberto, iluminado pelo fogo das tochas acopladas à caveira do boi, complementada pelo corpo feito de varas com cobertura de tecido. Outras vezes o el Toro Candil só possui a cabeça incandescente, sem o corpo. Com essa mínima descrição já é possível perceber tratar-se de duas manifestações completamente diferentes entre si: na estruturação, na formatação, na estética, na significação, na função, e na contextualização. 

Toro Candil - Paraguai por época de San Juan





 
                                Mascarados do Paraguai -   Kamba  -  período de San Juan


Mário de Andrade (1982) acredita que o Bumba-Boi embora não seja genuinamente brasileiro, uma vez que sua origem está ancorada nas culturas ibérica e européia, se torna nacional quando o associa às festas mágicas afro-brasileiras, principalmente ao ritmo, aos instrumentos, às cores e acumula grande influência indígena na postura, nos movimentos da dança. Torna-se, portanto, uma expressão considerável para a cultura popular brasileira, principalmente porque há um sentido crítico implícito na dramatização.

Já o el Toro Candil, que também tem suas raízes ibéricas, ficou mais ligado aos costumes árabes, cujo povo possuía habilidade incrível e os segredos da doma dos corcéis, além da valentia com que dominava os touros. Os camponeses espanhóis de então, que tanto admiravam seu porte galhardo, tentavam imitá-lo, mesmo porque as moças admiravam-nos por tal façanha. Ficou o saudosismo  dessa  época  e  as  touradas  de  Espanha, com  seus  toureiros famosos construíram sua história. 
                                                                                                              
Quando os conquistadores espanhóis desembarcaram na costa Argentina, para povoarem as novas terras, trouxeram em sua bagagem cultural as lembranças das domas e touradas do velho continente. Com o passar dos tempos, a lembrança foi sendo reconstituída em forma de troças e jogos, que como se apresenta hoje, é um jogo com o touro incandescente. Quem brinca esse touro? São os mascaritas, a maioria formada por homens mascarados e travestidos com roupas esfarrapadas, porque estão sujeitos às queimaduras pelo fogo. Essas figuras foram tomadas de empréstimo de outros jogos com a presença de los cambás, que os espanhóis, argentinos, paraguaios, equatorianos e outros fazem em comemorações ao San Juan.
 
                           Toro Candil na Argentina

Se folclore é arte do povo, deverá ser entendido como uma reminiscência do passado, em que sua raiz bebe na fonte da tradição, arraigado a princípios de uma completa humanização coletiva, exteriorizada pela e para a comunidade. A comunidade murtinhense é formada por maioria de descendência paraguaia, mestiça e, portanto, guardiã da memória de seus antepassados indígenas (na linguagem, na alimentação, no artesanato) e espanhóis (nas festividades, nos ritmos e danças). Por isso, reproduz a linguagem fronteiriça do nhengatu (Sigrist, 2008) e, assim, o nome do jogo é dado em espanhol: toro e não touro como pensam os menos informados; candil, de candeeiro (que ilumina, que porta a tocha acesa), e não candiu como o fazem os ignorantes. 

Portanto, el Toro Candil original não possui relação alguma com o Bumbá que se pretende identificar como uma tradição local e dos municípios do entorno. Enquanto o Bumbá se estrutura nos personagens como a Catirina, o Pai Francisco, a Cunhã Poranga (a índia bonita), a Sinhazinha da Fazenda, o Fazendeiro, o Pagé e outros personagens secundários unidos por um enredo, 
el Toro Candil não apresenta nenhum desses personagens, fazendo-se acompanhar apenas dos mascaritas, do toureiro e, às vezes, da ema (no lado brasileiro - em Porto Murtinho e Amambaí, por exemplo). 
        
Toro Candil em Amambai-MS

Desenhos de coração e estrela exibidos no visual do boi são signos exclusivamente das agremiações de Parintins, ou mesmo de Guajará-Mirim(RO), que se reúnem em locais denominados “currais” ou “QGs” não existindo nem nos bois do Maranhão (tombados pela UNESCO como patrimônio da humanidade),  que também têm seus signos próprios.


Boi Bumbá de Guajará-Mirim-RO - também cópia do Boi de Parintins-AM


Essas são apenas algumas das inúmeras discussões possíveis em torno da manifestação folclórica da brincadeira do boi e algumas instituições públicas se fazem de surdas e preferem ignorar o movimento em defesa do folclore brasileiro que se tem feito desde Mário de Andrade, Vila Lobos, Édison Carneiro, Renato Almeida, Câmara Cascudo e tantas outras lideranças de renome internacional. Portanto, a denominação utilizada para tal, a nova moda implantada no local, jamais poderá ser a mesma do tradicional Toro Candil.
                         
Evidentemente que poderemos dizer que o fato das tradições populares encontrarem-se em alta, respaldadas pela legislação do Patrimônio Imaterial já é um ponto a favor; no entanto, da forma como está sendo divulgado por algumas entidades murtinhenses, é como se dissesse que escrevendo rause, rorse, estrite dénce, de buque is on de teibol, estaríamos aprendendo a escrita do tradicional e bom  inglês – um engodo. 

Retomando o aspecto conceitual da discussão e lembrando que há, por vezes, muita confusão quanto à definição de folclore, de cultura tradicional, informamos que a Carta do Folclore Brasileiro, é clara e a UNESCO também o definiu “[...] expressão da cultura tradicional. Entendendo-se como tradicional comportamentos, usos, vivências e valores que qualquer grupo social, relevante culturalmente, utilizou durante o tempo suficiente para impor a marca local, independentemente da sua origem e natureza”, ou seja, a marca transmitida por sucessivas gerações.

Certo que um grupo é sempre um sinal mais pelo que representa no campo do associativismo, mas um grupo de folclore é muito mais, é um defensor da nossa identidade é um promotor do conhecimento. E se até podemos aceitar que todos sejam cultura há, no entanto, que separar as águas, porque de folclore são todos e (apenas) aqueles que constituem um “museu” vivo das suas tradições. 

Nunca será tradição local/regional aquilo que foi criado numa forma estritamente individual e com fins de espetáculo (da sociedade de consumo). Uma manifestação tradicional (folclórica) só o será se a sua raiz beber na fonte da tradição coletiva que tenha a ver com sua realidade, com seu contexto.

O presente relatado pode parecer que não tem importância, mas pode mudar a história local/regional, e daqui a cinquenta anos muitos vão acreditar, erroneamente, que esta era uma tradição do lugar. Conforme Banducci (2003, p.12), “respeitar as idiossincrasias culturais desses povos [ao longo do rio Paraguai], oferecer-lhes oportunidade de reencontrar práticas e costumes tradicionais, permitir-lhes reafirmar sua identidade regional, são questões fundamentais na construção de uma experiência turística socialmente justa e ambientalmente equilibrada. É preciso que o turismo se constitua numa oportunidade para que estas pessoas contem suas [verdadeiras] histórias e, mais que isso, como afirma MacDonald (1997), uma forma de garantir que elas sejam ouvidas”.

Diante do exposto, a Comissão Sul-Mato-Grossense de Folclore sugere aos órgãos públicos e privados e também à sociedade que não se percam os parâmetros culturais sobre a aludida manifestação e, também, considerando que o espetáculo criado recentemente representa um show interessante com potencial para um público ávido pela novidade, sugere:  

 - que o espetáculo criado recentemente sobre os dois bois seja identificado com outro título que não de Toro Candil, pois não o é porque não possui todas as características acima descritas e que ao ser convidado a dar explicações sobre o mesmo para a imprensa / público em geral, sejam bem esclarecidas as diferenças entre o tradicional e o criado para o espetáculo, a fim de não confundir as pessoas que assistem, levando-as a acreditarem que se trata de tradição local;

 - ao grupo tradicional de Toro Candil sejam igualmente oferecidos todos os meios de apresentação, reconhecimento, valorização e incentivos públicos, para que seus protagonistas e portadores das raízes culturais tenham a mesma oportunidade de visibilidade e reconhecimento dos setores públicos e privados.

Conforme a Carta Magna do Folclore Brasileiro, em seu Capítulo VII, “é necessário prestigiar e divulgar as manifestações artísticas representativas das diferentes comunidades; respeitar os interesses dos representantes da cultura popular nas decisões relacionadas à dinâmica de suas manifestações, sem atitudes paternalistas nem imposição de modelos alheios ao próprio folclore”. E no seu capítulo IX, há orientações aos grupos parafolclóricos, “que são assim chamados os grupos que apresentam folguedos e danças folclóricas, cujos integrantes, em sua maioria, não são portadores das tradições representadas. 
Organizam-se formalmente, e aprendem as danças e os folguedos através do estudo regular, em alguns casos, exclusivamente bibliográfico e de modo não espontâneo. Recomenda-se, pois, que tais grupos não concorram em nenhuma circunstância com os grupos populares e que em suas apresentações, seja esclarecido aos espectadores que seus espetáculos constituem recriações e aproveitamento das manifestações folclóricas” (desse ou de outros lugares). 
Fato assistido por milhares de telespectadores, durante o último Festival de Porto Murtinho, ocorrido no final de outubro deste ano, emissora de televisão anuncia a manifestação como uma tradição local de centenas de anos, quando na verdade foi inventada/ transposta/ copiada há menos de quatro anos, inspirada pela moda das transposições (como ocorrido com o carnaval baiano espalhado por todo o Brasil, por interesses comerciais).  É certo que a cultura popular, como qualquer outra vertente social, necessita da comunicação, e muito em especial da imprensa, já que este meio é determinante no registro da história e do movimento que o folclore alcança; por isso, tem importante papel quando atua honestamente, esclarecendo sempre as verdades sociais, culturais e outras. Entre nós, em especial a atenção para a tradição regional. Eis o desafio: dar a dimensão exata do que é cada coisa, que deve estar cada uma em seu lugar.



Referências Bibliográficas:
ALMEIDA, Renato. A inteligência do folclore. Rio de Janeiro: Americana-INL, 1957. 
ANDRADE, Mário de. Danças Dramáticas do Brasil. 2ª edição, Tomo I, Belo Horizonte: Itatiaia, 1982.
BANDUCCI, Álvaro. “Turismo cultural e patrimônio: a memória pantaneira no curso do rio Paraguai”. In: Revista Horizontes Antropológicos. Porto Alegre: IFCH-UFRGS, vol.9, n.20, out./2003.ago/1951. Revisto e atualizado no VIII Congresso, Salvador: 12-16 dez./1995.
CONVENÇÃO PARA A SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL. Documento elaborado durante a Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), na 32ª sessão. Paris, 29/9-17/10/2003.
SIGRIST, Marlei. “Um paraíso entre a Cordilheira e o Cerrado”, In: SENAC.DN. Pantanal: sinfonia de sabores e cores. Rio de Janeiro: Ed. Senac Nacional, 2003. 
______________. Chão Batido: a cultura popular em Mato Grosso do Sul: folclore, tradição/ 1ª ed. 2000 / 2ª ed.rev.e ampl. Campo Grande, MS: M.Sigrist, 2008.
______________. “A dança tradicional – uma expressão do regionalismo”, In: Anais da Uniarte 25 anos. Mesa Redonda: Artes, Literatura e Cultura: interfaces e intermediações. Dourados: UNIGRAN, 24-28/out./2009. (em andamento para publicação).

Campo Grande,     2009

Cordialmente,

Marlei Sigrist
Presidente da Comissão Sul-Mato-Grossense de Folclore

Maria Ivonete Simocelli                                      Jussara Terezinha Vilhalba
 1ª Secretária                                                    Conselheira 

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